Os famosos e os livros (04/07/2010)
O caminho entre o aeroporto Charles De Gaulle e o hotel estava cheio de anúncios do iPad. Tive vontade de ter um: poder viajar com um número grande de livros sem carregar o peso. Trouxe a "Economia fundamental", de MD Magno, a "Gota de sangue", de Demétrio Magnoli, a "Primavera silenciosa", de Rachel Carson, e as traduções de Augusto de Campos para versos de Keats e Byron. Deixei na mesa de cabeceira o novo Deleuze de Roberto Machado (que já li da primeira à última página, mas que precisaria ter à mão), uma tradução mexicana de "O ser e o tempo" (onde não apenas os substantivos do título vêm com os artigos definidos naturais em nossas línguas, mas também onde toda a dificuldade de Heidegger aparece como dificuldade, não como opacidade, como acontece na tradução brasileira) e "Spinoza e a política), de Marilena Chauí. Além da "Ilíada", de Haroldo de Campos (que imaginei poder usar a turnê para ler na íntegra). No entanto, trouxe um livro que pesa menos do que um iPad - e é sobre ele que quero falar: "Os famosos e os duendes da morte", de Ismael Canepelle.
O name dopping do parágrafo acima serve para pôr minhas (no fundo modestas) considerações sobre o livro de Canepelle numa perspectiva de responsa. É que cheguei ao livro pelo filme - e em ambos o mundo virtual tem larga presença e funda importância. Na verdade. o livro foi lançado quando o filme já estava concluído, e são imagens do filme que ilustram sua capa. Mas foi o interesse especificamente literário dessa pequena novela que me surpreendeu e para mim é essencial que isso seja ressaltado.
Sou de uma geração que lia poesia. Ao redor de cervejas, declamávamos Drummond, Bandeira, Pessoa, Lorca. Em breve descobríamos os autores de prosa lírica - aqueles que o marxismo de Lukacs desprezava. Para mim, tudo começou com Milôr Fernandes - sim, no "Pif Paf" de "O Cruzeiro", os textos dele foram as primeiras sugestões de prosa modernista que li, menino, prefigurando a experiência de deslumbrar-me com os contos de William Saroyan em "O jovem audaz no trapézio volante", que me fizeram sentir como se estivesse diante de algo que adivinhara e que, aos 15 anos, já chamei de "moderno". Depois, num alumbramento, Clarice e Rosa. E - seguindo sugestão de João Augusto Azevedo - Virginia Woolf, Carson McCullers, Katherine Mansfield. Daí que, quando encontrei os concretos de Sampa, não só me apaixonei pelo "Miramar", de Oswald, como encarei o "Ulisses", de Joyce - e me foi mais natural preferir o "Finnegans Wake": quando escrevi "Acrilírico", ainda não tinha lido senão as sugestões de palavras-valise em artigos dos irmãos Campos.
Era um culto à literatura modernista que eu compartilhava com meus companheiros de geração. Quando se começou a falar em pós-moderno, vi que os meninos olhavam para a tela do computador, e os letrados fingem que é ultrapassado falar-se em McLuhan. Concordo com Augusto de Campos e Habermas: quase sempre que se fala em pós-modernismo, o que se faz é a defesa da produção pré-modernista. Não tem graça.
A prosa liricizada ensaiada por escritores sem rigor era rapidamente chamada de "subliteratura" por meus amigos. Sem dúvida, a sobriedade elegante da escrita de Chico Buarque deve seu imaculado gosto a essa instintiva defesa. Mas fugir da subliteratura serviu também para cairmos em histórias policiais contadas com suposta objetividade masculina. Achei chato. Ismael Canepelle não precisa disso. Muitos traços do que em 1963 chamaríamos de subliteratura estão presentes em seu livro. Mas a força de seu texto está em não ser vulnerável a essas indulgências. A correnteza de metonímias, condensações, sinestesias é digna de um Oswald - e não parecem as relações de procedimentos oswaldianos tão crispadas do "Panteros", de Décio Pignatari. Tudo é sinceramente sentido e organicamente composto. E, mais importante, se impõe por si mesmo tal como se apresenta. Não se percebe uma querela crítica atuando como pano de fundo. As sentenças interrompidas, com o ponto caindo depois de uma preposição que indica o abismo ou de um artigo definido que aponta para a indefinição, são usos inventivos da pontuação, de gosto modernista e eficácia universal. No ápice da crônica trágica, o narrador imagina que a menina gritaria para seu parceiro de pacto suicida, quando vê que ele não morrerá: "colono filho da puta". E sabe-se logo tudo sobre os valores na cidade do interior gaúcho fundada por imigrantes. Palavras que não me saem da cabeça: Geheimnis, Ândreo. Talvez eu apenas deseje que um mundo de garotos leia este livro e converse sobre ele - pela internet e ao vivo.
Vendo o filme de Esmir Filho baseado nesse minirromance, pensei que enfim materialize-se espontaneamente a ideia de uma "estética do frio", preconizada por Vitor Ramil. Lendo o livro, vi que, além disso, insinua-se na literatura brasileira algo realmente pós-moderno que não renega os avanços modernistas: juntos, o filme e o livro retomam a narrativa de arte, sem que seja o viciado uso de plano-sequência com câmera na mão nem a mistura de laconismo americano e realismo mágico. Prosa, me disse Augusto de Campos, meio brincando, é poesia mal escrita. Exceto quando é prosa que se faz como poesia. Incrivelmente, é esse o caso de "Os famosos e os duendes da morte". Não é o "Retrato do artista quando jovem", mas, em seu tom elegíaco, é um retrato de jovem artista que não desmerece a arte da literatura.
Caetano Veloso.
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