Paranoia (20/06/2010)

Li um artigo muito elucidativo de Marcos Nobre sobre "aparelhamento de Estado", um bordão da crítica oposicionista ao governo do PT. Nobre diz que, se realmente se quer atacar o problema, tem-se que propor uma diminuição drástica do número de cargos de confiança. O PSDB, segundo ele, não "aparelhou" menos o Estado do que o PT: apenas contou com uma parte já "aparelhada" no âmbito estadual pelo PFL no governo Itamar Franco. O PT, além disso, esteve na oposição por 22 anos: tinha de rearrumar a equipe em grande escala. As denúncias de aparelhamento feitas por Serra, portanto, não resistiriam  uma mirada mais atenta. Falar em reduzir ao mínimo os cargos comissionados, ninguém fala. De fato. 

Quem me lê aqui, abrindo o artigo nesse tom, pode pensar que tenho pretensões a colunista político. Nada mais longe de mim. Habituei-me a ler comentaristas políticos nos jornais muito tarde. Acho que só depois que Glauber declarou adesão a Geisel. Nunca mais deixei de ler Jânio de Freitas ou Castelinho, Dora Kramer ou Teresa Cruvinel, Ilimar ou Merval, Clóvis Rossi ou Fernando Rodrigues, entre outros. Mas tenho o tipo de temperamento que levava os colegas da faculdade a me tacharem de alienado. A política do tropicalismo era fincada na estética. Ouvi muita conversa na escolha sobre o que se escrevia nos jornais. Mas no jornais mesmo eu quase só lia crítica de cinema. Com a experiência da música, da prisão e do exílio, minhas leituras tardias de reportagens e artigos políticos passaram a cair em terreno cada vez menos estéril. E sempre gostei de falar, opinar, discutir. Além disso, no meio em que vivo - o da classe média meio letrada - opiniões políticas são um must: ao chegar ao Rio, em 1964, elas faziam parte até do charme das moças bonitas que apareciam nuas nos filmes nacionais. Não há texto de análise política que não produza em mim uma discussão imaginária com o articulista. E em mesas de restaurantes sou divertidamente eloquente. Assim, de vez em quando se leem e se lerão aqui comentários sobre posições tomadas por jornalistas especializados. Mas feitos por um artista popular e generalista de vocação.

Em meio `sensatez de Nobre, um parágrafo sobre as agências reguladoras criou dúvidas em meu espírito. Ele diz que o PT nunca creu que a fiscalização de concessões feitas pelo Estado devesse se fazer por intermédio de tais agências. Aqui fiz uma pausa, dada a minha relativa ignorância a respeito do funcionamento das mesmas - e para uma pergunta: por que, fazendo coisas em que jurou por 22 anos não crer, o PT implicaria logo com as reguladoras? Mas Nobre segue dizendo que, se a questão do aparelhamento do Estado fosse tomada seriamente, ela se poria onde de fato se dá: nos fundos de pensão estatais. Sou, também quanto a isso, relativamente ignorante. Mas aqui o articulista parece mesmo estar menos interessado em defender o PT do que em analisar as questões de fundo. Cresce em credibilidade. No entanto, ao equilibrar as críticas do candidato tucano às previsões (desmentidas pelos fatos) de que Lula tentaria um terceiro mandato, ele me fez pensar numa conversa de restaurante de que participei faz poucos dias.

Ouvi de um amigo jornalista, num convescote, que o convite feito a "celebridades" para escrever em jornais é uma tentativa furada de enfrentar a queda da palavra impressa no mercado. Era um camarada meu, oriundo do jornalismo e atuante em política. Sentia saudades de um suposto tempo em que jornais eram feitos por jornalistas. Achei que ele se referia a mim e a Fernanda Torres (ou Zeca Baleiro) quando falou em "celebridades". Pois bem, nessa conversa, esse amigo explicou que, uma vez eleita, Dilma se sentirá independente de Lula, e aí tudo muda. É, disse ele, o que sempre acontece com filhotes políticos de grandes líderes, como os de Brizola e os de ACM. Um pouco intimidado por ter sido classificado como celebridade, arrisquei a hipótese de que Dilma talvez não venha a ser um Cesar Maia ou um Mário Kertéz de Lula. Que algo na simbiose entre ela e o presidente que faz lembrar Cristina Kirchner, Rosinha e Garotinho. Que o caso dela está em algum lugar entre Cristina-Rosinha e Maia-Kértez. Ela é muito casada com Lula - e por isso talvez venha a ser o Dutra dele. 

Éramos todos "de esquerda" à mesa. A comida era requintadamente escolhida. E o vinho também (menos para mim, que odeio vinho). E essa conversa me pareceu, em retrospecto, quando li o texto de Marcos Nobre, relevante o suficiente para aparecer publicada em letra de fôrma. Talvez seja porque Nobre termina seu artigo dizendo (em referência à tese de Serra de que o aparelhamento teria criado os "neocorruptos") que "corrupção é coisa séria demais para ser misturada assim com política" e que o avanço democrático pede que as "fantasias de cubanização e aparelhamento sejam deixadas para encontros sociais de fina estampa". 

O uso da expressão "fina estampa" (que é o título de um disco meu) não foi o bastante para justificar uma paranoia de que ele estivesse falando de mim. Seria demasiada pretensão. Eu é que quis vestir a carapuça. Achei que valia a pena comentar essa coincidência aqui nesta coluna dominical, onde sempre busco induzir quem me lê a dar uma olhada nos próprios pensamentos de um ângulo oblíquo que, embora confunda (ou talvez por isso mesmo), pode iluminar algumas áreas do que ficou sem ser pensado.

Caetano Veloso.

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