Pessoas (03/04/2011)
Se eu tivesse lido a coluna de Fernando de Barros e Silva, na “Folha” de 19 de março, eu talvez nem tivesse sentido tanta necessidade de escrever meu artigo de domingo passado. O “caso Bethânia”, invenção sensacionalista e comercial da “Folha de S. Paulo”, tinha recebido análise lúcida e crítica equilibrada no próprio jornal (com Barros e Silva suprindo função de ombudsman). A “Folha” é mesmo o que eu disse: vende-se como aberta ao debate e procura não decepcionar seus leitores quanto a isso, embora seu dono tenha de fato dito (mas ele era um menino, então) que a “Veja” era sua inspiração. A cronista social da “Ilustrada” veio de “Veja”. A volúpia de dilapidar reputações conquistadas trabalhosa e honradamente leva insinuações maldosas para a primeira página, na certeza de que grupos de ressentidos aderirão em hordas horrendas. Respingos de bile. Mas o jornal segue sendo tão isento quanto lhe é possível, e isso não é pouca coisa. Pior seria não haver liberdade de imprensa ou mesmo remota ameaça à livre expressão.
A escritora portuguesa Inês Pedrosa, minha amiga (e dona de um estilo admirável, com aquela desenvoltura que a regularidade sintática dá aos escritores lusitanos) me disse sentir que há mais calor na recepção da obra de Fernando Pessoa entre brasileiros do que entre seus patrícios. Pode ser. De minha parte, já contei o quanto “Mensagem” foi crucial para que eu construísse uma perspectiva ao olhar o mundo. Pois bem, fui ver — e o fiz, em parte ao lado de Inês — a exposição sobre Pessoa que está no Centro Cultural Correios. Tive vontade de que todos os brasileiros a vissem. A disposição espacial, as relações entre as palavras e as imagens bi ou tridimensionais fazem da ida ao Centro Cultural Correios uma experiência rica e que bate fundo. Não se esperaria nada menos, sabendo-se que está a cargo de Hélio Eichbauer a estruturação visual do evento. Há um vídeo de uma multidão urbana (em que o foco passeia do primeiro plano para o fundo), feito por Carlos Nader, que deslumbra e faz pensar, ilustrando (ou respondendo a) a declamação por Antonio Cicero. Há um fragmento (dois planos que se repetem indefinidamente) de “Limite”, de Mario Peixoto. Há um fac-símile de “Mensagem” em tamanho gigante, no qual se pode ler todo o livro, passando as páginas com um gesto, como se faz em Kindles e iPads: os poemas (com anotações de Pessoa sob algumas palavras ou à margem) surgem como os grandes acontecimentos que são. Com gesto semelhante você pode passar as páginas dos poemas de cada um dos heterônimos em boxes destacados para cada um deles. A exposição encanta e exalta o espírito — e muitas vezes os poemas muito conhecidos nos surpreendem. Não posso imaginar uma pessoa jovem, sensível e em busca do mundo e de si mesma que não vá ver Fernando Pessoa na versão generosa e inspirada que nos dão todos os envolvidos no projeto.
Ontem à noite, por causa de ter tido tão boas surpresas ao ouvir a Rádio Roquette Pinto, liguei o rádio do carro na mesma emissora. Eu tinha escrito aqui sobre o encanto intenso causado pela audição de “Ladeira da preguiça” cantada por Rosa Passos, e sobre quão interessante e belo é ouvir “Pra que discutir com madame?” com Diogo Nogueira. Pois bem, ontem ouvi “Pra que discutir com madame” com Rosa Passos (cuja voz reconheci — e fiquei mais certo de que era ela por lembrar de sua versão desse samba obra-prima de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa), mas o locutor (que tinha uma voz de gente jovem), depois de identificar Luisa Maita numa interpretação excelente de um tema vagamente nordestino, disse: “Pra que discutir com madame?” com Diogo Nogueira. Houve alguma confusão de informação lá na rádio e o rapaz disse o nome da canção que eu ouvira mas não o da cantora que a cantara — e sim o de outro cantor, embora este também tenha gravado essa canção e eu tenha me dado conta disso justamente na Roquette. Tudo era bonito. Foi um erro com um charme especial para mim: era como se eu tivesse feito parte da confusão que levou a ele.
Outra exposição que justifica a já deliciosa ida até aquela parte do centro da cidade em que se encontram os centros culturais Banco do Brasil, Correios, Casa França-Brasil, enfim, aquela parte cheia de paredes sólidas e espaços bonitos que deságuam na Candelária (e de onde fui, faz alguns carnavais, ver o início do renascimento dos blocos de rua do Rio, o que me comoveu), é a “I in You” (ou “Eu em Tu”, na informalidade do português brasileiro, ou melhor, carioca) de Laurie Anderson. Laurie é uma mulher muito doce. Conheci-a há muitos anos, quando ela veio ao Rio com “Home of the brave”. Depois disso, sempre a reencontrei na plateia dos meus shows em Nova York. A partir de um ano X, ela levou consigo seu marido Lou Reed, de quem ouvi, sobre “Noites do Norte”, que era um dos shows mais bonitos que ele já tinha visto. Não digo isso por mera vaidade: faço-o porque certas desproporções provincianas (das quais eu não estou isento) precisam ir caindo como edifícios de areia. E porque o elogio ia (vai) mais para Jaques Morelenbaum, Marcio Vitor, Du e Jó, Pedro Sá, Davi Moraes e Jorge Elder. E, outra vez, para Eichbauer. No mínimo. A exposição de Laurie é bela, calma, inteligente. Seu trabalho é a versão sutil e profunda da sensação difícil que americanos justos sentem diante da força do país onde nasceram. É lírica e pessoal, mas é política até o fim — de uma política da História.
Caetano Veloso.
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