Por uma vida melhor (22/05/2011)

Quero ler o livro de Heloisa Ramos por inteiro. Estou na Bahia gravando a voz de Gal com Moreno no estúdio Ilha dos Sapos, de Carlinhos Brown (que fica no Candeal, um bairro com muitas características de favela mas que transpira tranquilidade e autoestima, o que se deve ao trabalho da Timbalada de Brown na área): não tive tempo de procurar o livro e estudá-lo. Fico com as notícias exageradas da imprensa, que estamparam manchetes alarmistas sobre o MEC ter aprovado uma cartilha que “ensina a falar errado”, e os artigos de Bagno e Possenti, os sociolinguistas que parecem crer que a língua é viva hoje, mas que também parecem negar que as normas vigentes são criação do povo (“o inventalínguas”) através dos séculos.

Os linguistas estão certos ao denunciarem a açodada reação dos jornais: estes tratam um comentário feito numa página como se fosse a totalidade dos ensinamentos do livro. Mas os jornais são jornais: têm de excitar, entusiasmar, fazer indignar-se seus leitores, enquanto os informam. Não é absurdo que tenham tomado o breve comentário como sintoma de um problema grande que o livro pode representar. A pressa com que os sociolinguistas, em atitude verdadeiramente esnobe, desqualificam os jornalistas por conhecerem menos bem a norma culta do que eles próprios sugere uma euforia de superioridade, um deslumbramento de qualificação científica que mais aponta para uma vaidade arrogante do que para o alegado pendor igualitarista. No fim das contas, ouvimos ecos das odes ao português de Lula que eram mantra da campanha petista (a qual começou faz décadas e nunca terminou, nem mesmo com o metalúrgico cumprindo dois mandatos e fazendo a sucessora), o que, por sua vez, remete aos cargos distribuídos aos companheiros.

Não entendo que se queira ensinar linguística ou sociologia aos alunos de alfabetização. De qualquer idade. É auspicioso que se informem os professores sobre as descobertas dessas disciplinas. Mas ao aspirante ao letramento, quanto mais firmeza simples melhor. Possenti está certo ao afirmar que ninguém precisa ensinar quem diz “os peixe” a dizer “os peixe”. Ensinam-se as regras de concordância da norma culta. A menção à legitimidade da forma em que o plural se exprime apenas (e satisfatoriamente) no artigo é só uma demonstração do professor de que ele não acha que o aluno “é burro” ou que a forma que usa é “errada”. O mestre, depois de anunciar a equivalência essencial das duas formas, alertaria o estudante para o fato de que o uso de uma delas pode levá-lo a ser vítima de “preconceito linguístico”. Mas quem busca alfabetizar-se tem sede de conhecer os mecanismos da gramática vigente neste ponto da história. E explicações complexas não fazem avançar o aprendizado. Esses linguistas têm grande ciúme do sucesso que fazem os professores de gramática que, oferecendo aquilo de que tem sede a grande massa, ocupam espaços em jornais e tempo no rádio e na TV. Deduzem — e alardeiam — que estes são representantes dos esquemas de dominação de classe. A busca de lógica na criação da gramática — de uma mínima lógica que mantém a língua de pé e a faz mais capaz — é tida como imposição de gramáticos vilões. Ora, se a gente diz “se suicidar”, vendo que é logicamente errado (por pleonástico) mas admitindo que o povo consagrou a forma pronominal do verbo, e se os mestres, do primário à universidade, ensinam assim, é prova de que o que fazemos é adotar as mudanças que pegam. Milhões seriam os exemplos de fatos semelhantes. Se o inglês é uma espécie de “português popular às avessas”, por deixar o artigo inalterado e indicar o plural apenas no substantivo (“the books”, enquanto dizemos “os livro”), devemos louvar a hegemonia do inglês (e sua combinação de altíssima entropia com capacidade de acolher repertório de outras línguas)? Ou o quê?

O fato é que a novidade de livros didáticos legitimarem formas como “os peixe” não pode deixar de ser notícia espalhafatosa. Pelo simples fato de que esse assunto interessa, surpreende, indigna, excita, alegra e exalta semianalfabetos que desejam aprender, jornalistas bem ou medianamente letrados, pais de família preocupados com o futuro dos seus filhos, professores de gramática — e linguistas semi- ou ultra-sofisticados (para usar aqui o hífen à moda inglesa). Ou seja, dos sem-poder aos mais poderosos. Os linguistas não estão entre os primeiros. O Brasil, a Terra em Transe de Glauber, que é o país que pôs Lula no mapa-múndi (ele é nominalmente citado no livro de Khanna por uma fala sua sobre vontade política), não pode aparecer aos próprios olhos como um exemplo de nação linguisticamente preconceituosa. William Bonner dando a notícia sobre o livro de Heloisa não tem nada de monstruoso. Os sociolinguistas petistas, por sua vez, não são meros esnobes inúteis ao reagir como se assim fosse: há algo de bom em termos esse tipo de alerta. Contanto que não deixemos a confusão (inclusive essa minha aparente indefinição aqui) atrapalhar nosso desejo de criar uma vida melhor.

Sandra de Sá cantando com Seu Jorge no Municipal semana passada é resposta melhor a tudo isso. Para não falar em Djavan, Milton, Sandy, Olodum Mirim, Guto Graça Mello, e, sobretudo, Bethânia. Tem momentos em que parece mesmo que temos recursos para fazer o que devemos. E o que devemos é salvar o mundo com a nossa (como diz Khanna) nacionalidade forte. Por que fazer por menos?

Caetano Veloso.

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