Raul Seixas e ACM (19/09/2010)

"Retenção em direção a Raul Seixas e ACM." É uma frase e tanto para marcar a entrada na cidade de Salvador. A voz da moça no rádio do carro não deixa transparecer nem uma gota de ironia ou ansiedade. Apenas adverte o motorista já preso no engarrafamento que ele terá maiores dificuldades ainda ao chegar a conhecido viaduto que desemboca em conhecidíssima avenida. As margens da estrada estão cheias de pessoas que agitam bandeiras com nomes de candidatos, alguns dos quais aparecem também em cartazes apoiados na grama. Aparentemente todos estão abraçados com Lula. Muitíssimos com Dilma e Lula. O governador Jacques Wagner aparece num grande outdoor entre seu vice e Dilma. Inacreditavelmente ele é anunciado como Wagner Dilma, em grandes letras brancas. Letras miúdas explicam a que ele é candidato apenas com a palavra "governador". 

Letras igualmente pequenas dizem que seu vice é Otto Não-Sei-Quê. Nada é explicado sobre Dilma, de modo que o nome dela realmente aparece como sendo o sobrenome de Wagner: mesmo tipo, mesma cor, mesmo tamanho. A Bahia é especialmente lulista. Sempre foi. Eu me orgulhava disso. Agora já não consigo sentir que ela o seja pelas melhores razões.

Sou otimista e creio que as melhores razões ainda predominam na composição do fenômeno Lula. Mas é impossível não ver a infantilidade dos eleitores na aceitação do que quer que Lula diga ou faça. Entendo o papel que a economia desempenha no êxito do seu projeto de fazer o sucessor. Mais ainda: o Bolsa Família é um grande conseguimento. Mesmo assim, senti necessidade de gritar para os microfones da Rádio Santo Amaro FM que o presidente da República não pode declarar que um partido político deve ser extirpado. A frase de Lula sobre o DEM é inaceitável. Nem adianta lembrar o papo de livrar-nos da "raça petista", lançado por Bornhausen: este também era incivil (e com um risco de conotação terrível pela escolha da palavra "raça"), mas ele não era presidente da República. Reafirmo meu voto em Cesar Maia.

A mesma voz no rádio informa que Erenice Guerra foi destituída do cargo que herdou de Dilma. Também pudera: com aquela nota em tom de ofensiva que ela lançou, só podia mesmo dançar. Era uma nota que dava vontade de mover céus e Terra para que Serra passasse ao segundo turno com Marina. Que que é isso? "Aético e já derrotado"? Incrível. E olha que eu gosto menos da "Veja" do que da Erenice, se é que você me entende. 

Salvador não tinha engarrafamentos assim. Não faz muito tempo que isso começou. Uns poucos anos. A cidade inchou, e hoje muito mais gente pode comprar carro. Além disso, há uma Barra da Tijuca no litoral norte: condomínios já se encadeiam desde Santo Amaro de Ipitanga quase até Aracaju. Nosso carro entra na cidade "por dentro", isto é, pela Paralela e outras estradas paralelas à orla marítima. Portanto, não vi as praias sem barracas. Era meu sonho (e meu comício quase diário) que se retirassem as barracas fixas das areias da orla. O prefeito que se reelegeu (como, meu Deus?) tinha erguido "barracas" de alvenaria, para substituir as barracas de telhado de palha. Estas já eram problemáticas, pois todas serviam comida, tinham banheiro para os donos e empregados (que muitas vezes dormiam lá) etc. As de alvenaria prefiguravam uma favela crescendo sobre a praia em direção às ondas. Tinha o problema do som alto com música pop comercial (axé, sucesso americano, pagode, axé e axé). Eu odiava. Desisti de ir às praias de mar aberto (o Porto da Barra não tinha barracas fixas) e sentia vergonha de levar visitantes amigos. A gente vai à praia para ouvir as ondas baterem, não música vulgar em caixas rachadas. Não é que agora, de repente, esse mesmo prefeito teve um estalo de Vieira e, sem que se conhecesse um plano de solução para a questão, resolveu retirar todas as barracas de uma vez? Parece suspeito? Bem, ouço o papo de liberar o gabarito dos prédios da orla. E não gosto de intervenções, por mais sensatas no pensamento, que não levem em conta o que já funciona. De todo modo, eu acho que uma barraca que se chama, desde, pelo menos, 1972, Jane Fonda: Um Toque de Aconchego (isso escrito em talha de madeira pintada, podendo ser lido do ônibus) devia ser tombada: eu tinha um sonho de mostrar à própria Jane Fonda e tentar traduzir o "subtítulo" para ela. 

Falar de Salvador aqui pode fazer Xexéo voltar a me sacanear com piadas sobre regionalismo que invadiu, por meu intermédio, as páginas cosmopolitas do Segundo Caderno. Mas a prova de que a Bahia é menos provinciana do que o Bairro Peixoto é que foi lá que Zé Dirceu disse as palavras definidoras do futuro governo Dilma. O trânsito emperrado entre o viaduto Raul Seixas e a Avenida Antônio Carlos Magalhães me fala da tensão entre o impulso desprovincianizante e o populismo arraigado. As primeiras palavras petistas sobre Lula ser maior do que o PT (e disso ter produzido uma vitória do PT sobre o próprio Lula, este passando a ter sido uma jogada para que o projeto político do partido domine o país) foram pronunciadas na Bahia. Onde sempre se descobriu o Brasil. Aliás, por que ninguém respondeu a minha pergunta sobre a razão de aprendermos na escola que o Brasil foi descoberto? Domingo que vem eu conto como Jon Hendricks me levou, via Moreno, a redescobrir tudo. Ouvindo essa música, fiquei mais capaz de apreciar Raul, ACM, Erenice ou Dirceu. Venha o que vier, eu encaro.

Caetano Veloso. 

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