Terra em transe (08/05/2011)

Será que o Brasil começa a deixar de parodiar “Terra em transe”? Ou de imitar o filme, como acho que foi a forma que Cacá Diegues escolheu para descrever o fenômeno do país que não cansa de parodiar uma obra que o parodia. Fazia anos que eu não assistia ao longa de Glauber Rocha que mudou minha cabeça em 1966. Vi-o agora com o último livro de Tony Judt na cabeça. O protagonista, interpretado com intensidade por Jardel Filho (que, se não tem a concentração irrepreensível de Geraldo del Rey em “Deus e o diabo”, tem mais técnica de atuação e, de resto, um personagem muito mais complexo do que o Manuel de Geraldo), recita clichês re-elaborados sobre os conflitos entre a personalidade poética e a necessidade de ação política efetiva.

Mas essa re-elaboração não é um mero truque de estilização estéril: ela implica consequências fundas no pensamento subjacente ao filme. Paulo Martins se revela um narcisista desesperado, e a política à sua volta, um turbilhão avassalador, onde a reflexão sensata não encontra lugar. Talvez esse retrato da ação política como um carnaval desprezível (embora magnético) tenha sido o aspecto que mais atraiu minha sensibilidade na extrema juventude. Agora me pergunto se a chegada de Fernando Henrique ao poder representou, numa medida a ser considerada, o começo da superação da realidade que fez possíveis o personagem, o filme e a extraordinária aventura visual, rítmica e ideológica do artista Glauber Rocha. Para a raiva tola de amigos e parentes petistas, sempre vejo o período FH/Lula como um continuum. E esse bloco de tempo tem a ver com amadurecimento social e político. Não é que não veja as diferenças entre os dois governantes. Não é que atribua a FH desenvolvimentos do seu legado que só Lula realizaria. Claro que a mente moderada odiou o lance publicitário encapsulado na fórmula “herança maldita”, lançada pelo mesmo PT que se opôs a todas as ações do governo anterior que foram tão úteis a ele, uma vez chegado ao poder. A pergunta que me surge é: essa expressão “social-democracia”, inscrita no nome do partido de FH, o Brasil tem estado à altura de pronunciá-la?

O livro de Tony Judt (o título, numa tradução desorientadora, é “O mal ronda a Terra”) é uma defesa tardia dessa linha que caracterizou as tendências políticas europeias (e influiu nas americanas) do pós-guerra. A socialdemocracia, que tanto atrativo tinha sobre mim na adolescência (para desespero dos meus amigos comunistas, que viam nas experiências escandinavas um truque burguês para evitar a Revolução), é a força por trás dos Estados de bem-estar europeus e do New Deal americano. Judt, numa cruzada justa contra o reaganismo-thatcherismo que definiu a volta da direita ao procênio da História ocidental, não apenas diz que um executivo da Wal-Mart ganhar 900 vezes o salário médio dos funcionários da firma não é “natural”, como situa o crescimento das ideias social-democratas (e do New Deal de Roosevelt) no contexto da reação aos riscos da desigualdade — e, paralelamente, desnuda a volta ao liberalismo clássico, na versão Hayekiana, à situação peculiar de alguns pensadores austríacos, que temiam a presença do Estado na economia por causa do trauma nazista. Pessoalmente, reagi com espontaneidade contra as políticas de Thatcher e Reagan com uma menção a meu pai, que foi funcionário dos Correios e Telégrafos por mais de 30 anos e sempre demonstrou dedicar-se com mais entusiasmo ao trabalho por esse ser, então, um serviço público. Na verdade, citei meu pai e São Francisco de Assis. Contavam-me que Thatcher tinha dito “Eu privatizaria o ar, se pudesse”. Judt procura mostrar como é irracional privatizar ferrovias. O PSDB levou a cabo o que Elio Gaspari chama, com graça amarga, de “privataria”. Como manteve a expressão “social-democrata” no nome do partido?

Bem, o livro de Judt é assim de sensato e generoso. Mas, na percepção imediata que temos do mundo hoje, toda a sua conversa parece uma lamentação saudosista: as declarações daquele jovem americano de origem indiana que trazem de volta a ideia de uma “nova Idade Média” soam mais adequadas à vida atual na Terra. A fragmentação, a multipolaridade, a intuição de uma governança mundial sem centro hegemônico definido — essas ideias ditas em tom mais delirante dão mais conta do que a justeza das observações serenas de Judt, tão atado à perspectiva do Atlântico Norte. Estados Unidos e Europa aparecem como “futuro do passado” aos olhos de quem sente as turbulências por que passa o mundo. O desespero aparentemente narcisista de Paulo Martins, o personagem de Glauber, seus delírios de superação do insuperável, encontram sintonia com o desenrolar dos acontecimentos contemporâneos — e com essas tentativas de visão de conjunto arrojadas. Lula tem algo dos políticos populistas caricaturados em “Terra em transe” — e FH tem algo da falsa finesse da elite retratada no filme. Mas, em conjunto, aproximaram mais o Brasil de um equilíbrio social do que seus antecessores. Há mais “social-democracia” no pós FH/Lula do que antes. O papel do Estado sempre foi grande demais por aqui. A guerra de Roberto Campos e Paulo Francis por uma economia de mercado tem gosto civilizatório entre nós. Mas para o Brasil ter o peso que deve na nova configuração mundial é preciso que, mesmo aprendendo a não depender do governo, nosso povo não jogue fora o reconhecimento do papel do setor público.

Caetano Veloso.

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