Tortura e sociedade (06/06/2010)
Eu estava sob o impacto do artigo de José Miguel Wisnik, publicado aqui faz uma semana, quando o texto de Fernando de Barros e Silva, da "Folha de S. Paulo", me chamou a atenção para a revista virtual "Fevereiro", acessível em www.revistafevereiro.com. Lá, além do editorial da primeira edição - que contém, do ponto de vista da esquerda, as exigências que eu próprio faria à esquerda brasileira, ou seja, expõe de modo explicativo o essencial do que me leva a fazer esforços de subpoeta impaciente em pele de antijornalista sensato -, há o artigo de Ruy Fausto contra o anti-humanismo de Badiou e Zizek; a crítica mordaz do livro "Extinção", de Paulo Arantes, escrita por Alexandre Carrasco; e, por Daniel Golovaty, uma análise da situação Israel/Palestina (agora atropelada pelo triste episódio do ataque às embarcações de ajuda aos oprimidos na Faixa de Gaza). Além disso, pode-se ler, na seção Debates, uma avaliação justa da atitude imperdoável de Lula no caso da morte do dissidente cubano quando de sua viagem a Havana. Mas é ao texto de Cícero Araújo sobre tortura e memória que quero me ater: é nele que ecoam as reflexões a que o artigo de Zé Miguel me levou.
Com mão leve e coração aberto, como é do seu feitio, Wisnik encara o problema do respeito ao conquistado pela Lei da Anistia sem que se perca de vista o dever de deixar claro que não aceitaremos o inaceitável. Cícero Araújo não pensa de modo muito diferente. Mas o essencial de seu argumento é que, no sutil progresso desse acerto de contas - que teve a Anistia como momento culminante mas não como meta final atingida -, é necessário que prossiga o diálogo entre a sociedade como um todo e as Forças Armadas. No horizonte da cuidadosa caminhada, a apresentação por parte das Forças Armadas do pedido de perdão que elas devem à sociedade brasileira.
Minhas lembranças da prisão incluem muitos oficiais que se surpreendiam e se indignavam com as arbitrariedades do regime. No xadrez da PE da Vila Militar às vezes eu ouvia, durante a noite, gritos de homens sendo espancados a ponto de em algumas ocasiões uma "padiola" ser pedida com urgência. (Depois, como conto em "Verdade Tropical", me disseram tratar-se de presos comuns - o que me levou a pensar na crueldade estrutural da vida brasileira). Mas o major que comandava o quartel dos paraquedistas, onde passei o segundo mês de prisão - e que foi escalado para dirigir meu interrogatório -, mostrou-se decepcionado e mesmo revoltado quando, provada minha inocência na acariação, recebeu de seus superiores um "não" à sua reinvindicação de me pôr imediatamente em liberdade, como ele me assegurara que faria caso as testemunhas que indiquei comprovassem minha versão. Ele tinha dado sua palavra, confiante na disciplina e na honradez militares: não podia entender que seus próprios chefes o impedissem de cumpri-la. O nome dele era Hilton. Parecia um homem honesto sendo traído justamente por quem deveria exigir dele honestidade. Também o coronel Luís Artur, em Salvador, quando Gil e eu fomos levados para lá, demonstrou incômodo diante do fato de nos terem entregado a ele sem nenhum documento escrito.
Encontrei entre os militares muitos homens que não estariam em paz com suas consciências se soubessem que seus pares, ou civis a mando deles, praticavam - ou eram coniventes com - atrocidades em porões. Tenho todas as razões para imaginar que dentro das Forças Armadas há ambiente psicológico mais equilibrado do que fazem supor certas manifestações públicas de oficiais que não só se atêm à reação defensiva contra qualquer gesto no sentido de aclarar o que se passou, mas agridem a própria razão e a civilidade. As velhas argumentações de uma Jarbas Passarinho, defendendo a tese de que devemos nos congelar no estágio da Lei da Anistia - e atribuindo a violência nas prisões à reação à guerrilha -, tenderam a ser substituídas, depois da tentativa de retomar o tema com o PNDH-3, por declarações que parecem querer proibir que se toque no assunto. Diz-se que o Estado sonhado pelos que lutavam contra o governo militar seria muito mais duro do que aquele que eles combatiam. Eu próprio, dados os exemplos históricos, não acho isso improvável. Mas os esboços de guerrilha urbana foram reação minoritária e, como a história contada por Zé Miguel mostra, muitos foram assassinados e torturados sem que nada tivessem a ver com a luta armada. Além disso, não se podem equiparar ilegalidades cometidas por cidadãos comuns - alguns já abusivamente punidos - àquelas exercidas por autoridades oficiais. A sugestão de pedido de perdão visa a retirar das Forças Armadas o papel de arma guardada na gaveta para ser usada contra a democracia, como pôde ser por mais de um século.
Se apoio a ideia de que se abram os arquivos do regime militar e, caso se comprove a participação de autoridades em episódios de tortura, que as Forças Armadas peçam perdão à sociedade, não é por desprezar os militares, mas, ao contrário, por respeitá-los.
Caetano Veloso.
© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações.