Trilha (28/11/2010)
Estou excursionando com Maria Gadú (não sei por que o acento agudo no nome dela, mas sei que ela é um talento autêntico), de modo que, desatento aos rumores do momento, tomei susto ao ouvir que eu estaria entre os assinantes covardes da petição que rola na internet com o título - em tom de ridículo brado - "Chico, devolve o Jabuti!". Só não me decidi a expressar reação escandalosa porque li que o nome do próprio Chico (sim, Chico Buarque) está bem incluído. A informação dada pelo blog da Companhia das Letras, que edita o meu colega, diz que por 17 vezes o prêmio de Livro do Ano já foi para livros que não estavam em primeiro lugar em sua categoria. (Para quem não sabe, o argumento contra o prêmio dado a Chico é que "Leite derramado", ganhador como Livro do Ano, não tinha ficado em primeiro lugar entre os livros de ficção: os ganhadores de cada categoria são eleitos por um júri de especialistas e o Livro do Ano é escolhido por associados da Câmara Brasileira do Livro, que é quem criou o Jabuti.)
Li em outro lugar que essa discrepância entre melhor de uma categoria e Livro do Ano aconteceu três vezes. Seja como for, volto a chamar de covardes os que se expressam na internet sob outros nomes, como fiz quando vi a guerra eleitoral exacerbar essa mesquinharia. E é no panorama mesquinho da guerra eleitoral que se inscreve ainda esse episódio. Não dá para saber se a motivação para a premiação nasceu dessa pequena política, mas é óbvio que a reação a ela vem daí e aí se esgota. Lê-se o Ronaldo Azevedo sobre o assunto e fica claro que não é de valores literários que se está tratando, mas de opor-se a um escritor que, sendo uma figura enormemente popular por causa de décadas de atividade como compositor de canções, pôs a força de sua imagem pública a serviço da candidata do PT à presidência, quando a eleição desta se viu ameaçada pela renovação do embate no segundo turno.
Chico sempre foi apoiador do PT. Seu pai foi um dos fundadores do partido e sua mãe era entusiasta de Lula. Inimigo preferencial da censura na ditadura militar, Chico não encontrou senão motivos para firmar suas posições de esquerda - e sua desconfiança dos defensores da liberdade que fecham os olhos para a vista grossa feita pelas nações poderosas quando os desrespeitos aos direitos humanos são praticados por seus aliados estratégicos de ocasião. Sei que eu próprio estou por vezes sob exatamente esse tipo de suspeita. Mas faço minhas contas e chego a minhas conclusões pela minha própria cabeça, agindo e manifestando-me de acordo - e arcando com as consequências, inclusive a possibilidade de a realidade me provar errado no médio ou no longo prazo. Não vejo o Brasil sem Chico apoiando Lula. Meu senso das proporções - que afinal é o que rege quem trabalha com formas artísticas, mesmo as mais bastardas - impede-me de ignorar a energia histórica que há em configurações assim. Portanto, vi esse manifesto na internet como mais uma Marcha da Família com Deus pela Liberdade expressando-se de forma verbal. Não vi meu nome entre os assinantes (não fui olhar a lista de pseudônimos das marchadeiras): apenas acreditei em que me disse que ele estava lá. Indigna-me que brinquem assim com ele. Meu pai ficaria tão revoltado quanto o pai de Chico.
Fiz questão de não votar em Dilma e de dizê-lo. Alegro-me por ter reagido duramente à arrogância eufórica de Lula durante a longuíssima campanha de sua candidata. E de nunca ter me submetido à pressão popular que quer fazer de Lula um pai eterno - nem à outra pressão, não propriamente popular, que faz do PT um representante das esquerdas e destas, uma posição religiosa dogmática. Detesto que me queiram confinar num ambiente mental que se excita com Chávez, se alimenta do sindicalismo operário e do corporativismo dos servidores públicos, indulge no ressentimento contra os Estados Unidos e desculpa o indesculpável no Irã. Mas menos ainda me identifico com reacionários carolas e grosseiros. Ou com defensores de privilégios assentados e indevidos.
Dilma é o melhor resultado das eleições, se pensarmos pragmaticamente. Serra não teria personalidade para enfrentar Lula como opositor. E Dilma está mais perto de Mangabeira. Quem sabe os planos ambiciosos deste para o Nordeste serão agora levados em consideração. E sua visão da questão amazônica. Não penso mais em Dilma como Dutra. Torço por ela. Torci até por Collor. Já consigo vê-la descolada de seu criador. Penso em como ela encarnará o destino que se desenha do Brasil. O Brasil está me parecendo um lugar ruim nesta semana de tardio reconhecimento por parte do governo do estado do Rio da relação entre a criação das UPPs e os atos paraterroristas das facções criminosas (então Cabral e Beltrame não tinham nenhuma mirada estratégica?). Vejo ainda longe a superação do horror que é haver pobres presos sem julgamento, prisioneiros provisórios jogados no lixo tóxico das prisões, essas heranças horrendas dos porões dos navios negreiros. Quando canto com Gadú, ela com 23 e eu com 68 anos, sinto fisicamente a História. E, diante das amarguras da nossa vida, percebendo as plateias sentirem a História na carne também, comovo-me. Quase desanimo. Mas gosto da vida e nasci aqui, falo português, sou mulato: minhas esperanças estão atadas à existência do Brasil. Nem mitos esquerdistas nem a retórica da reação me desviam da trilha que vejo de onde estou.
Caetano Veloso.
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