Amor em SP (23/10/2011)
Vejo a cara de Criolo que olha para mim antes de andar até o microfone. Estamos no escuro esperando a deixa para começarmos nosso número. MV Bill é quem nos anuncia no VMB. Essa festa de premiação é o B do VMA? Enquanto espero, vejo Bento Ribeiro e acho que Tatá Wernek num telão: eles atuam num outro palco que parece ficar a quilômetros do que Criolo e eu ocupamos. Bill, Bento e Tatá, três cariocas em Sampa — e eu e Criolo cantando “Não existe amor em SP”. São Paulo está cheio de amor. Eu tinha feito o ensaio com uma segurança que me surpreendeu. Na hora H, nervoso e emocionado, quase me perco nas palavras e nas notas. Nos corredores e camarins, pude falar com Erasmo (grande momento: toda a nossa atividade em Sampa nos anos 60 veio à cabeça), Arnaldo Antunes, Mallu Magalhães, Tulipa, Tiê… Queria poder ter falado com os humoristas da MTV (Dani Calabresa, Marcelo Adnet, Tatá e, sobretudo, Bento, que não vejo pessoalmente desde sua puberdade).
Penso na chegada da MTV ao Brasil, com Deborah Cohen organizando e dirigindo. Foi Deborah, amiga com quem já trabalhei em viagens internacionais, uma americana que fala português muito bem (e francês perfeito), quem, logo antes de o canal ser lançado ao público, me fez a pergunta: “Você acha que devemos pronunciar Emtivi, à inglesa, ou Emetevê, dizendo o nome das letras na pronúncia portuguesa?” E eu respondi sem hesitar: “Emetevê.” Nunca me ocorreu dizer agá-bê-ó em vez de eitch-bi-ou ao me referir à HBO, mas sempre achei que MTV é parente de Fenemê, entra natural na fala brasileira. Mas é claro que Deborah perguntou a outras pessoas e suponho que todas estavam loucas para simplesmente repetir o nome em inglês da emissora (só anglófilos-americanófilos estavam a par da existência de tal canal de TV). Havia até aquela canção do Dire Straits (por vezes acusada de sexista, racista e homofóbica), “Money for nothing”, em que Sting (como artista convidado) repete (com a melodia de “Don’t stand so close to me”) o grito “I want my MTV”. Mas eu decidi me manter fiel à minha decisão declarada a Deborah.
Eu adorava “clips” (que é como os brasileiros chamam, em inglês, o que os americanos chamam simplesmente de “video”, como uma abreviatura de “music video”). Ainda gosto. Em horas mortas a emissora ainda os exibe, se bem que a nova direção tem tendido a fazer da MTV uma estação mais musical. Mas eu adoro os humoristas. Assisti a inúmeros VMBs. Foi lá que conheci Mano Brown. Os amigos de meu filho de 14 anos não acreditavam quando eu dizia que já tinha falado com Mano Brown e que ele tinha sido muito amável — tendo inclusive me pedido para ir até a mesa em que estava sentado para me apresentar a sua mulher: os adolescentes da Zona Sul (no que se igualam aos da Zona Norte e aos das favelas) têm Brown como um semideus, um líder inatingível. Pois, na noite em que acabara de ensaiar com Criolo na MTV, anteontem, Brown me convidou para assistir a Boogie Naipe, um projeto paralelo que ele toca com amigos de dentro, de fora, de perto e de longe do quarteto dos Racionais. Ice Blue está com ele sobre o palco. Cantores e rappers (Helião, Lino Krizz, Vanessa Jackson, Flora Matos, Terra Preta), DJs (Sing e CIA) e dançarinos (com as caras pintadas de branco, em reconhecimento à importância que teve Marcel Marceau na criação da break dance) — e Seu Jorge. Este é, em muitos sentidos, um caso à parte: é o único instrumentista dentre os artistas presentes, e sua linguagem corporal é tão carioca (ele usava uma camisa onde se lia “Menino do Rio”) que o estilo paulistano da black music (com muito de disco) do coletivo fica ressaltado em sua precisão, inocência e originalidade. Não era a primeira vez que eu via esse bando em ação. Justamente para levar Tom e seus incrédulos amigos para ver o líder dos Racionais, fui ao Centro do Rio assistir a uma apresentação do Boggie Naipe, pouco menos de um ano atrás. Tal como agora em São Paulo, vimos um Brown sorridente, em quase nada semelhante em atitude ao sisudo front-man dos Racionais MCs, muito soul, disco, funk, Seu Jorge e tudo o mais. Os amigos de Tom ficaram impressionados com a costumeira amabilidade do Mano em relação a mim (aliás, ele foi muito mais formal com os meninos do que comigo: educado, não finge intimidade com quem não tem, embora demonstre calor com quem já conhece e a quem já deu mostras de amizade).
Tal como tinha acontecido no Rio, Mano Brown me chamou para que subisse ao palco e cantasse “Sampa”. Como todos sabem, é a canção que anuncia que São Paulo, uma vez chamada de “túmulo do samba”, é futuro quilombo de Zumbi, o que pôde ser tomado como uma profecia do nascimento de coisas como os Racionais. Depois de ter ensaiado “Não existe amor em SP” com Criolo (que Fernando Salem observou que tem parecença física com Diogo Nogueira), toda essa exuberância de interações (de Tatá Wernek a Terra Preta) me pôs num estado de ânimo que tem muito de vontade de morar em São Paulo, saudade do tempo em que vivi aqui, esperanças na união de forças das novas gerações de paulistas e cariocas (o eixão Rio-Sampa existe e não deve ser demonizado, embora Fábio Cascadura seja um dos melhores cantores que o rock, o Brasil, já teve e mora na Bahia, enquanto o fino Glauber Guimarães está em Sampa produzindo mas ainda não reprofissionalizado), um flash do enfrentamento dos Browns, Carlinhos e Mano, um sentimento da força do pop, com o Brasil nele.
Caetano Veloso.
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