Ano bom (01/01/2012)

Faz tempo que não esperamos uma entrada de ano com tão poucos bons prognósticos. 2011 foi um ano rápido e cheio de turbulência. Foi o ano em que o mundo viu que a crise de 2008 é a crise que nunca terminou. Foi também o ano das viradas no mundo árabe e de suas enigmáticas promessas. Jovens na Espanha, nos Estados Unidos, na Inglaterra, no Chile, na Grécia, espelhando as movimentações dos países islâmicos, saíram às ruas e se disseram indignados, saquearam lojas, exigiram responsabilidade estatal pela educação, propuseram ocupar o centro financeiro do Império, revoltaram-se contra o desmanche do Estado de bem-estar social. Ou talvez tenham sido muitos adultos e velhos agindo como jovens. Como o que costumávamos chamar de “jovens” em 1967. As redes sociais da internet se traduziram em atos físicos, multidões de corpo e vozes, suor, spray de pimenta na mucosa dos narizes. Há algo de maio Francês e de Berkeley em tudo isso. Li alguém dizendo que essas coisas a gente sabe onde vão dar, já que vimos no que deu barulho dos anos 1960. Mas, sabemos mesmo?

Sou otimista. Por determinação. Por teimosia. Por loucura mística. Por bom senso. Não acho que os trancos sessentistas deram apenas em yuppies que geraram as bolhas ponto com que, por sua vez, geraram a bolha imobiliária americana que contaminou a economia mundial, expondo o desvario que é a criação de modos complicados de fazer dinheiro virar mais dinheiro. O mundo vem melhorando e piorando aceleradamente há séculos. A única virada importante seria equacionar o programa de luxo para todos com o equilíbrio da Terra. O Quinto Império de Vieira deveria tomar a si essa tarefa. 2012 chega com sons de fim de mundo e a gente sabe que situações quase desesperadores podem ser grandes oportunidades. O livrinho de Fernando Henrique (“A soma e o resto”, suas reflexões sobre a vida aos 80 anos) pode parecer uma irrelevância na estante do aeroporto, mas é uma conversa de alto nível (embora não seja um texto de alto nível de elaboração nem de estilo). Como reflexões de um ex-presidente, suas palavras dignificam o país. São o pensamento espontâneo de um líder político que agiu a partir de uma visão abrangente e tem consciência de que o fez.

Dizem que 2011 foi o ano do livro “A privataria tucana”. Ainda faltam algumas páginas para que eu termine de ler a “Soma” de FH – e li apenas umas 60 páginas do livro de Amaury. Expor meu entusiasmo pelo livro do ex-presidente pode parecer aqui que faço contrapeso político em favor dos tucanos. Longe de mim. “A privataria tucana” tem estilo jornalístico vibrante. Não sei se vai me convencer de que o estatismo de Geisel era melhor do que os passos dados em direção ao liberalismo, de Collor a Lula. Mas me dizem que o livro desmascara figurões do PSDB de modo irrespondível. Será? Pode ser que, para minha surpresa, se revelem fatos desabonadores da hombridade de Fernando Henrique. Eu não gostei nunca das manobras para a sua reeleição (não votei nele para se reeleger). Mas saber o que sei sobre o mensalão não me impediu de dizer que Lula é um grande personagem épico. Fernando Henrique também o é – e o mais interessante é que ele entende tudo sobre a grandeza histórica de Lula. Com a modéstia que sua educação exige (e que controla sua famosa – e perceptível – vaidade), FH não exalta sua própria passagem pela presidência, embora a defenda e qualifique. Mas ele tem consciência de seu peso histórico. E mente alerta para a imediata atualidade. Isso não é pouco para o ex-presidente de um país que, segundo trechos de uma outra conversa sua (aquela com João Moreira Salles na “Piauí”), nunca terá jeito ou deixará de ser a pobreza que é.

É curioso que esse país insalvável (ao qual estivemos sempre acostumados) tivesse chegado, naquela entrevista, ao discurso do mesmo homem que agora mostra saber tão bem sobre nossas possibilidades e entender com tanta clareza o que seria a contribuição do Brasil à formação de um novo equilíbrio mundial. Não é o desenvolvimento do trabalho do sociólogo: aqui (como desde sua entrada para valer na política) é a reflexão apressada sobre os fatos concretos que se sobrepõem às argumentações teóricas: uma espécie de “esqueçam o que escrevi” finalmente dito, mas em outro tom.

Dizem que não prosperaremos num tempo em que a Europa derrete e os EUA ficam em ponto-morto. O professor Agostinho da Silva dizia que o fracasso do Brasil era-lhe benéfico: não teremos êxito nos quesitos em que os poderes grosseiros o têm. Com que moral pode falar de si mesmo nesses termos o brasileiro, se a tortura exercida por carrascos da ditadura persiste nas prisões comuns e nas escaramuças das vielas? Agostinho era português. Sou brasileiro e suponho que ele também acharia mais certo que os torturadores fossem punidos. Os de sempre. Sempre. E que criássemos um mundo sem lugar para torturadores. mais que isso: sem a possibilidade de formação da psicologia de um torturador. A Nova Psicanálise de MD Magno, em sua “clínica geral”, apontaria para uma reviravolta dessa magnitude? Sim. Mas isso toma uns dois séculos. Tudo bem. Podemos ter paciência. Mas há desejos excitados por possibilidades tangíveis. Há a chance de esboçarmos algo da realidade que sonhamos. Não queremos ser hegemônicos. Queremos ensinar. Aprender. O brasileiro hoje lê mais. Milagres? Sim. Se não no Natal, no Ano Novo.

Caetano Veloso.

© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações. 

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)