Arcos (21/10/2012)

Passei tantas noites em estúdio gravando que nem pude ver os filmes que entraram e saíram de cartaz. Não gosto de passar muito tempo sem ir ao cinema. Sinto saudade. O único aspecto negativo é o ar-condicionado em 17°. Mas, da pipoca aos letreiros finais, em que os créditos das canções — se as há — ou das gravações de trechos de sinfonia ou ópera, enfim, tudo o que diga respeito a música que não seja a trilha composta para o filme surge no rabinho da interminável lista de técnicos, quando quase todos os espectadores já deixaram a sala, e permanecem na tela poucos segundos, em blocos simultâneos, não dando tempo de a gente ler quase nada (quem decidiu essa hierarquia? Por que a música incidental fica para o chocalho da cascavel?), amo estar num cinema.

Dizem-me que David Byrne aparece no filme em que Sean Penn faz um cantor de rock de batom vermelho. Contam-me que “Intocáveis” é maravilhoso. Leio que há um filme chileno sobre a publicidade e a queda de Pinochet. E eu não vi nada. Parece que não sou eu. Isso de eu perder mostras e filmes que me prometo ver já vem acontecendo há muitos anos, por causa de estúdios, aeroportos, aviões e palcos, mas não me reconheço longe do garoto que via todos os filmes em cartaz, ia ao Clube de Cinema (no foyer do Teatro Castro Alves) e à Maison de France (no Vale do Canela). Fiz até um filme, nos anos 1980, só para esquentar e então fazer cem, mas a experiência me esfriou. Houve muitos xingamentos e agressões, e eu nem achava que o filme fosse bom o bastante para me inspirar uma reação forte. Adiei voltar a pensar no assunto. E daí em diante só fiz adiar outra e outra vez. Parece que a canção é meu destino. Embora eu não tenha muito talento musical.

Na quinta-feira o Brian Eno, em recado trazido por Marcello Dantas, me chamou para conversar. Ele é um sujeito excelente. Direto, claro, carinhoso. Uma vez estive no palco com ele: no Queen Elizabeth Hall tocamos “Terra” juntos. Tocamos é modo de dizer: eu toquei essa minha “Terra” ao violão que todo mundo já está farto de ouvir e Brian ficou fazendo uma cama invisível e praticamente inaudível (ele próprio me disse então que era respeito pela delicadeza do meu jeito banquinho e violão, mas algum crítico paulista pode dizer que era desinteresse que eu acredito). Depois estive com ele na casa de Joe Boyd, grande figura histórica do rock: americano que vive em Londres desde os anos 1960 e produziu Pink Floyd, Nick Drake e The Incredible String Band, depois de ter sido produtor e tour manager de Muddy Waters e Sister Rosetta Tharpe (conselho de Glauber Guimarães: procurem Rosetta no YouTube: é genial!). Boyd, mais tarde, produziu um disco do R.E.M. Nesse jantar em sua casa de Londres, estavam também Chrissie Hynde e David Byrne. Brian conversava sobre os ataques às torres gêmeas de Manhattan (era 2002) em tom de conhecedor de bastidores da política internacional. Pois bem, Brian está aqui para fazer uma exibição de algo que bem poderia ser a realização dos meus sonhos: combinação de projeção de imagens e criação de sons. Ainda mais que a projeção se dá sobre os meus idolatrados Arcos da Lapa.

O trabalho com música eletrônica se parece com o trabalho do cinema. Há essa sensação de se estar fazendo pintura no tempo. A mixagem e a masterização de toda música gravada já tem esse caráter. É uma situação moviola. Digo moviola porque foi numa moviola que montei (Mair Tavares montou comigo e para mim) o filme que dirigi. Ainda se usava tanto a moviola quanto o verbo montar. Hoje, no Pro Tools, é editar que se diz. Falávamos um pouco de francês. Hoje, um pouco de inglês.

Estou escrevendo antes de ver o trabalho de Eno na Lapa (tive estúdio até ontem, hoje entrei de “férias”. Vou à Lapa, mas não dá para escrever este texto, que sai domingo, depois de assistir à apresentação). Já ia dizendo que sinto não poder comentar aqui como foi o espetáculo. Mas na verdade acho que é uma vantagem poder falar, não do que terá sido feito, mas do que eu imagino que possa se fazer (estou usando a voz passiva sintética, que não quis usar no domingo passado, e Bagno pensou que desconheço os modos de uso, mas hoje não tem plural). Penso em Eno, morador e adorador de Londres, rebento da força histórica do mundo de língua inglesa, combinando com total liberdade tons de sons e de cores, motivos melódicos e imagens, texturas harmônicas e composições espaciais. Sinto inveja dele. Tão calmo. Tão sólido. Com uma juventude tão extravagante de glam-rocker e uma maturidade tão assentada de artista-pensador. Poder criar assim e ainda ter os Arcos como tela é grande sorte. Morar no Rio e ter tal locação, um milagre.

Caetano Veloso.

© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações.

Postagens mais visitadas deste blog

O Leãozinho (Caetano Veloso)

Os Argonautas (Caetano Veloso)

Milagres do Povo (Caetano Veloso)