Associação (26/02/2012)

Carnaval para mim sempre foi coisa importante. Claro que eu me sentia às vezes inautêntico, tendo de querer pular, me perguntando se a vontade vinha de dentro de mim mesmo. Por que dançar agora? Só porque todo mundo combinou que esse é o momento de querer dançar? Eu entrava no período de carnaval em Santo Amaro com forte expectativa de acontecimentos grandiosos. Essas perguntas me vinham à cabeça antes de me decidir a aderir a um grupo de foliões já entusiasmados. Muitas vezes a animação vinha mesmo de fora para dentro. Eu deliberava que ia começar a brincar, e em poucos minutos já estava tomado. Comer e coçar. Os carnavais nunca me frustraram. As cores desmaiadas dos confetes faziam-nos mais mágicos: se fossem concentradas e brilhantes, a alegria misteriosa daqueles dias não seria tão intensa. Gosto de festas, de oportunidades coletivas de celebrar, de acordos a esse respeito. Hoje na Bahia repete-se muito o chavão da alegria obrigatória. Mas o que é mesmo o carnaval?

Conheci o carnaval do Rio antes de conhecer o de Salvador. Vi os clóvis em Guadalupe, os blocos de sujo na praça tão bonita de Marechal Hermes, os bate-bolas em volta do coreto de Quintino, o Bafo e o Cacique na vastidão da Avenida Central - que é como ainda por vezes chamávamos a Rio Branco. O que mais me intrigava era a preguiça dos cariocas. Na Bahia, perguntamos a alguém se ele ou ela esse ano "pulou carnaval". No Rio, toda a gente apenas arrasta os pés e ergue os braços. Bem, depois refleti sobre os passistas de escola de samba e vi que só os pernambucanos do frevo mais bordado é que se podem comparar a eles. Baianos são passistas de frevo amadores. Passistas que não aprenderam a dançar frevo: têm a energia e a disposição, mas não a perícia. Resulta muito dionisíaco. Depois do fenômeno do Gerasamba, que virou É o Tchan, o hábito de sambar entrou no carnaval baiano. O  samba de roda era obrigatório em quase toda festa: no Bonfim, na Conceição, no São João, nos aniversários. Mas o carnaval era das marchinhas, tratadas como quase-frevos. Passistas de frevo imperitos, os baianos eram sambistas aposentados no carnaval. Com o Tchan (que deu no Harmonia do Samba, que deu no Psirico), sambar passou a ser programa coletivo no carnaval de Salvador. Mas Harmonia, Psirico, Parangolé, enfim todos os grupos de neopagode encontram meios de fazer, a intervalos, a multidão sentir o samba como um galope desdobrado, que pode ser (e é) dançado também como os frevos mais rápidos do Chiclete com Banana.

Articulistas profissionais troçam da retomada anual do assunto carnaval quando chega a Quarta-feira: é uma forma de tematizar o famoso último recurso do cronista, ou seja, a falta de assunto. O que era mesmo uma entidade, tão referida na minha infância, denominada Associação dos Cronistas Carnavalescos? Quem me lê aqui de vez em quando já deve ter notado que em meus textos reina a livre associação de ideias. Na ressaca de um carnaval que quase não brinquei, tem tido presença em minha cabeça a questão do incômodo que é o carnaval para quem não gosta dele. De Zizek a Paquito, que mora no Campo Grande, em Salvador; de vizinhos do Leblon a associações de bairro no entorno do Jardim Botânico; de evangélicos a senhoras acamadas; de missivistas à redação a motoristas impacientes, tem gente se queixando como nunca contra o carnaval. 

Quando eu era menino, não ouvia queixas: parece que quem não gostava de carnaval se sentia na obrigação de respeitá-lo como a um marco religioso (que ele não deixa de ser). Depois, começando pela Bahia (e pelos carnavais que foram influenciados pelo novo carnaval de Salvador), a chiadeira começou. De fato, quem pode morar na Rua Carlos Gomes e aguentar sete dias de sons estrondosos (os trios têm equipamento para show de rock em estádio)? Sendo que agora os camarotes começaram a tocar música gravada desde a manhã. Blocos não param de passar até a madrugada: que hora uma família residente na Avenida 7 de Setembro tem para dormir? Quando o Rio chorava ter seu carnaval resumido ao Tafawa Balewa Square de Niemeyer e Darcy Ribeiro, os moradores de bairros residenciais não tinham do que reclamar. Agora que a cidade celebra o renascimento do carnaval de rua, ninguém dorme em Ipanema. 

Sou um cronista carnavalesco. Me identifico com a maioria dos moradores da Avenida Sete que ficam felizes olhando os trios de suas salas, dançando e aplaudindo. Mas e os outros? Os zizekianos e os evangélicos? Bem, este ano resumi meu carnaval a desfilar na Águia de Ouro, em Sampa. Rita Lee sabia o samba-enredo todo de cor e me explicava as alegorias. Fiquei comovido com ela e com o Tropicalismo abordado por sambistas paulistanos ("Sucesso no cinema/ Terra em transe na tela/ A arte a moda em poema/ No teatro, "O rei da vela"). Senti a falta de Tom Zé. E vim pro meio do carnaval do Rio, que é aqui em casa: o Sambódromo virou um apêndice do evento que avassala a cidade. Mas a paradona da Mangueira foi o que de mais significativo aconteceu, mesmo porque, em sintonia com a tradição da verde e rosa (em 1965, na Presidente Vargas, a polícia montada tinha de bater nos populares para não invadirem a corda para segui-la), era o traço de união entre o espetáculo já antiquado descrito (a partir de velhas lembranças?) por Jânio de Freitas e o carnaval livre (livre demais?) das ruas da cidade. Com isso, o prêmio da Associação dos Cronistas Carnavalescos vai para o Xexéo. 

Caetano Veloso.

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