Caetano de ouvir cantar

Entrevista de Caetano Veloso sobre sua trajetória musical

Concedida a Roberto Benevides e publicada no Songbook Caetano Veloso

(Organizado por Almir Chediak. Lumiar Editora, 1988).

Sielington foi procurar o amigo Caetano, em casa, com uma novidade:

- Você precisa ir comigo ao Clube Uirapuru. Tem um disco que é uma coisa louca, me lembrei logo de você, você vai gostar à beça. A música se chama Desafinado e o cantor canta totalmente desafinado. A orquestra vai para um lado, ele vai para o outro. É uma loucura. Você vai gostar, é sua cara.

Caetano Veloso foi, ouviu e adorou:

- Quase caí duro pra trás. Achei lindo, gostei muito mais do que ele esperava e lhe disse na hora: “Você está enganado, ele não é desafinado, ele é afinadíssimo. Não tem nada de ele para um lado e a orquestra para o outro. Acho que nunca vi coisa tão certa... e tão estranha.

Era 1959 e a modernidade acabava de desembarcar em Santo Amaro da Purificação na voz e no violão do também baiano João Gilberto. Até o nome do disco era um toque: Chega de Saudade. O toque bateu forte no baiano Caetano Emanuel Viana Teles Veloso, pouco mais do que um adolescente de 17 já pronto, naquele final de década, para pôr os pés na estrada:

- Quando apareceu João Gilberto, aquilo me deu critérios totais. Fiquei alucinado, foi uma ligação imediata. Tinha todas as coisas da modernidade que me atraíram em Maysa, mesmo em Nora Ney, nos Cariocas, em Lucio Alves, em Dick Farney. Mas João centrou uma coisa que era vaga, embrionária e dispersa. Foi uma virada.

Mas se alguém pensa que Caetano é simplesmente moderno, se enganou, meu bem. É eterno. Antes de João, de Maysa, de todas as novidades, havia velhas canções e antigos carnavais:

- O carnaval deixa uma espécie de Nino Rota na cabeça da gente. As canções ficavam na minha cabeça. Quando eu era menino, menino mesmo, o carnaval passava e eu ficava com umas melodias... Acordava de manhãzinha e, daqui a pouco, vinha na cabeça um pedaço de melodia que não se explicava.

Outras melodias já faziam a cabeça do menino. Lá pelos três, quatro anos, colocou a música definitivamente na família Veloso:

- Eu adorava a gravação do Nelson Gonçalves de Maria Bethânia. Adorava, sabia cantar e, quando Bethânia nasceu, exigi botar o nome dela por causa da canção.

Surpreendente é que o menino das margens do Subaé gostava do vozeirão de Vicente Celestino e vivia a cantarolar:

- Noite alta, céu risonho

A quietude é quase um sonho

O luar cai sobre a mata...

E começava a enfrentar os críticos. Dentro de casa:

- Eu me lembro de que o Rodrigo e minhas irmãs mais velhas me sacaneavam porque eu gostava de Vicente Celestino, que realmente era meio indigesto com aquela voz querendo ser de ópera.

Quando cresceu um pouco, também ele já não gostava tanto. Mas passou a alimentar uma admiração, que ainda se mantém: Luiz Gonzaga. Criança de sete anos, só ia dormir depois de ouvir no rádio o programa do Rei do Baião.

Um pouco mais tarde, ali pelos nove anos, começou a viver outra experiência de olhar crítico, também dentro de casa. O pai José, funcionário dos Correios e Telégrafos, era incapaz de cantar ou sequer assobiar uma música, mas ouvia com carinho Dorival Caymmi e Noel Rosa, cantado por Aracy de Almeida:

- Isso era uma coisa que eu ouvia na vitrola de minha casa, inclusive com a influência crítica e os comentários de meu pai, que gostava muito de Noel. Meu pai, que era inteligente, comentava as letras e isso me impressionava. Me lembro de que eu me impressionava muito com a letra de Três Apitos, achava que aquilo era uma coisa tão bem feita, as idéias se encaixavam todas tão bem, os apitos, as rimas, a fábrica. Eu acho aquilo deslumbrante até hoje.

Outra influência familiar foi ainda mais decisiva na sua formação musical:

- Minha mãe cantava muito para mim e me ensinava a cantar, isso desde que eu me entendo e sempre. Ao lado do rádio e dessas outras figuras, tem sempre a minha mãe, a voz de minha mãe. Ela cantava canções antigas. Tem muitas canções que aprendi com ela, nem sei quem cantava.

Não é à toa que, aos 46 anos, o filho famoso de dona Canô continua incondicionalmente apaixonado pela canção:

- Eu vejo tudo preferencialmente através da canção, primeiramente passando pela canção. Eu adoro o canto. Gosto mais de música cantada do que de música instrumental, na área de música popular sobretudo.

Caetano vive se perguntando sobre a importância da canção na história da arte. Acha que a música popular, “por mais sofisticada que seja, trabalha com os restos do que a música já fez, com o lixo musical do passado e do presente", mas desconfia que "tem muito mistério nessa coisa toda":

- De repente, uma coisa que é feita numa área superbanal termina informando áreas mais densas. O interesse musical intelectualmente mais exigente pode buscar no banal o que os artistas pop procuraram nos quadrinhos, nas latas de sopa para aumentar o repertório das artes plásticas sérias. É uma atitude da arte sofisticada de ir procurar o banal.

Não se pense que o banal não possa ser sublime:

- Não sei se Pavarotti é necessariamente melhor do que Frank Sinatra, se é que ele é um bom cantor de ópera, coisa de que eu não entendo. Não conheço muito música erudita para saber, mas será que os irmãos Gershwin e Cole Porter não são alguma coisa?

A pergunta já lhe valeu uma decepção:

- O único livro de história da música que eu li na minha vida foi aquele do Otto Maria Carpeaux, Uma Nova História da Música, que é um livro muito inteligente, muito interessante. Mas ele fala do Gershwin, por exemplo, de um jeito que me deu raiva. Numa frase rápida, diz que ele realmente era um talento e tal, mas que não chegava a ter tanto valor porque infelizmente dedicou a maior parte do tempo à música popular. No entanto, justamente na parte de música popular, é que a coisa de Gershwin parece mais linda. As mais lindas canções dos irmãos Gershwin, as canções do Cole Porter, de Rodgers e Hart, de Irving Berlin ou mesmo uma grande canção de Duke Ellington - mas, sobretudo, Cole Porter e os irmãos Gershwin – não têm realmente nada a dizer na história da música?

Caetano tem outras perguntas:

- A Ave Maria, de Shubert, por exemplo, eu acho linda. É deslumbrante, mas por que aquelas repetições de fim de versos para completar a melodia? Por que não é perfeitinho, redondo, que nem uma canção de Gershwin? Aquilo não tem graça é tudo perfeito: a relação das notas, dos tempos e das palavras, a adequação prosódica.

Nem só a música popular o emociona:

- Uma vez, eu e Moreno tivemos uma emoção muito forte, juntos, com o Concerto para Violino, de Beethoven. Estávamos indo para a Barra da Tijuca para uma gravação na casa do Guto Graça Mello. Moreno ia mexendo no rádio, aí gostou e ficou ouvindo. Eu disse: "Eu conheço essa música. Isso é Beethoven". Chegamos, mas ficamos parados na porta da casa do Guto para ouvir até terminar, querendo saber o que era e também porque estávamos gostando demais da música. Moreno ficou apaixonado. Depois, eu comprei gravações desse Concerto para ele. Ele já ouviu inúmeras vezes. Aquilo é lindo, é lindo, é uma coisa linda. A gente fica emocionado. Tem uma tal noção de sentimento estético, de grandeza, de sobriedade ao mesmo tempo, junto com uma esperança, sem palavras, é uma coisa linda. E é uma coisa mais acessível do que, por exemplo, os Quartetos.

O menino Caetano, que tantas canções ouviu de dona Canô, também povoa de sons a cabeça do filho Moreno:

- Até botei os Quartetos para o Moreno ouvir. São maravilhosos, os últimos são incríveis. São estranhíssimos. Ele achou bonito, mas é meio pesado para ele. Ficou um pouco demais talvez. Não sei por que, não é uma questão de estranheza. Afinal, ele gosta muito de música experimental contemporânea. Ele ouvirá com muito agrado Weber, ou coisas ultracontemporâneas, coisas de John Cage ou então essas coisas cheias de ruídos de John Zorn. Moreno é louco por John Zorn, ele é que fica ouvindo. Mas o Quarteto, de Beethoven, não é só uma questão de modernidade, de estranheza, é a questão de densidade.

Toda e qualquer viagem não o tira do mundo da canção. Ele mesmo responde às perguntas a que não lhe deram resposta:

- Para mim, Ella Fitzgerald cantando Cole Porter é o máximo da música.

E tem uma nova e mais intrigante dúvida: Ou será que, para quem sabe mesmo muito, aquilo já era? Será que só tem um valor de coisa agradável e banal, com um desenhozinho de ilustração?

A resposta é uma declaração de amor;

 - Para mim não. Para mim, João Gilberto cantando Retrato em Branco e Preto é o máximo.

João, sempre João. Caetano ouve João nos discos, no rádio, nos shows tão raros, no telefone. Ouve João falando e cantando. E fala de João, fala sem parar, compara João com cada uma de suas outras paixões musicais. Por exemplo:

- Adoro ouvir Ella Fitzgerald, adoro ouvir Sarah Vaughan, idolatro Ray Charles, mas sobretudo João Gilberto.

Ou:

- Adoro Stevie Wonder, mas sobretudo João Gilberto, Chet Baker e Billie Holiday. Mas nada se compara com João:

- No João, parece que é tudo mais justo, necessário: a melodia, as vogais, consoantes, os sentimentos, o respeito por aquela forma, que ele reconheceu ali, o jeito daquelas coisas se expressarem esteticamente. João traduz a canção. É estranho porque ele faz com que a canção seja mais ela mesma e se torne uma coisa meramente João Gilberto e só ele. E não muda nada. Ao contrário, ele vai mais fundo na música do que o autor, do que as outras pessoas que já cantaram. Águas de Março, quando João canta, é muito mais Águas de Março do que em qualquer outro lugar. Não há nada tão Águas de Março. E é totalmente João Gilberto.

Mas voltemos à década de cinqüenta em Santo Amaro da Purificação, quando o amor desmedido de Caetano pela canção ainda se construía e lá não havia chegado nem a modernidade que desembocaria nos anos sessenta nem João Gilberto, sua mais completa tradução:

- Naquele período, ao lado de Caymmi e de Noel, havia o lixo todo que vinha pelo rádio, que era a mistura total. Tinha muita coisa caribenha na Bahia. Aliás, hoje de novo se consome muita coisa do Caribe na Bahia, não só o reggae, que lá é muito mais cultuado pela população do que no resto do Brasil, mas também coisa cubanas, músicas das Antilhas, de Porto Rico e salsa, lambada, merengue. Mas eu me lembro que Celia Cruz era uma figura importante para mim nessa infância dos anos cinqüenta, em Santo Amaro.

Na salada musical, que mais tarde vai virar matéria-prima do Tropicalismo, não podia ficar de fora a Rádio Nacional, é claro. E Caetano foi ver de perto o fenômeno quando morou um ano no Rio, em 1956, lá em Guadalupe, "entre Marechal Hermes e Deodoro", como já contou numa clássica entrevista ao Bondinho:

- Então, ia sempre ao programa, fosse Manuel Barcelos, César de Alencar, Paulo Gracindo. Foi uma das únicas vezes que vi Dolores Duran pessoalmente, na platéia e no palco. E eu gostava imensamente dela. E vi todo o pessoal. Via a Emilinha Borba, milhares de vezes, no programa César de Alencar... falando “que maravilha, hem César, que beleza!" E Marlene, fazendo as maiores lou-cu-ras... Pegava o cabelo, botava em cima do microfone, fechava todo o rosto, com microfone e tudo, e cantava dentro, fazendo gestos incríveis, coisas absolutamente geniais. E... Linda e Dircinha Batista. E Heleninha Costa, que eu gostava muito. Vi Caubi Peixoto ser atacado pelas fãs violentamente.

De volta a Santo Amaro, em 1957, uma lição de vida:

- Havia um culto muito grande, entre os amigos de minhas irmãs, do Sílvio Caldas, que é uma figura de quem eu gosto imensamente até hoje. Quando voltei do Rio, todo mundo estava superfeliz porque o Sílvio Caldas tinha saído com todos eles e cantado junto depois do show que fez no cinema em Santo Amaro. Falavam que ele era muito simples, que falava com todo mundo. Eu adorei isso. Isso até me influenciou depois que eu me tornei uma pessoa famosa. Eu achava lindo esse comportamento do Sílvio Caldas.

Caetano sabia que toda aquela simpatia pelo seresteiro vinha mais do lado boa-praça, caboclinho querido brasileiro do que da música e da voz, potente e boa, mas ultrapassada pela maior limpeza de um Orlando Silva ou um Nelson Goncalves. A influência crítica já vinha de fora de casa, de um amigo chamado Binu, muito mais velho do que ele:

- Ele gostava mais de Orlando e Nelson do que de Sílvio Caldas e eu entendia. Mais tarde, quando eu já estava maior, ele veio a gostar mais de Dick Farney e Lúcio Alves. E eu me lembro que a Dick Farney, a Lúcio Alves e aos Cariocas, minha mãe oferecia uma certa resistência estética. Ela achava estranho, achava um pouco chatos e esquisitos aqueles acordes dissonantes dos Cariocas.

E nessa época, embora fizesse sucesso nas festas do colégio cantando Caymmi e fados, procurando até imitar o sotaque português, Caetano tem os primeiros contatos com o rock:

- Tinha Rock Around the Clock, que Nora Ney lançou aqui, mas já tinha também as gravações americanas, tinha as versões.

Mas forte mesmo foi o choque com Chega de Saudade. Com a irmã Bethânia e os amigos Chico Mota e Ercília, ouvia o disco todos os dias, várias vezes, não mais no Clube Uirapuru:

- Bubu, um cara que tinha um bar, um botequim assim de esquina, comprou o disco e punha para ouvir. Era o gosto dele, dono do botequim, um tipo popular. Eu nem o conhecia direito, nem entrava no botequim, mas aí passamos a ir lá todos os dias. Quando a gente chegava, o Bubu botava o disco inteiro, várias vezes.

Um ano depois, em 1960, foi para Salvador:

- A cidade vivia, nesse período do final dos anos cinqüenta até 1964, uma efervescência na área de alta cultura, propiciada pela Universidade, que era algo realmente maravilhoso. Havia uma convivência que faz muita falta hoje. A Bahia, de uma maneira terrivelmente provinciana, oferece muita reação à convivência com os produtores culturais de centros maiores do Brasil e mesmo do mundo. Nessa época, era o contrário. O desejo era justamente de convivência.

Caetano havia trocado o velho piano da casa de Santo Amaro por um novo violão comprado por dona Canô. Ficava horas tocando e cantando com Bethânia. Começou a badalar discretamente nos bares da cidade agitada pelos artigos apaixonados de Glauber Rocha sobre cinema e pela turma da Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Descobriu a música americana:

- Com algumas pessoas com quem travei conhecimento, ouvi discos de Ella Fitzgerald, depois um disco que se chama The Blues in Modern Jazz, ouvia coisas de Jimmy Giuffre, gostava muito de ouvir Thelonious Monk, tinha long-plays de Mile Davis, ouvia sem parar Sketches of Spain.

Fez outra descoberta fundamental para os ouvidos e o coração:

- Ouvi Chet Baker, que era uma espécie de confirmação da coisa de João Gilberto, mais purificada, aquela coisa americana, mais límpida, mas também mais ingênua. Uma coisa que João Gilberto tem de superior a uma figura como Chet Baker, que é grandíssimo e eu idolatro sobretudo pelo que fez com o canto embora fosse essencialmente um trompetista, é a inteligência. Comparado com o João, Chet Baker resulta ingênuo.

É que João, um gênio, tira vantagem da dificuldade de ser brasileiro:

- A própria média americana já é mais alta. Todo mundo já é mais afinado, mais moderno, lá tudo já é mais o tempo todo, tem quinhentas mil pessoas tocando trompete, tem quinhentas mil pessoas tocando saxofone bem, todo mundo sabe aquelas escalas de improvisação. Então, parece que Chet Baker se torna possível como uma vaga, uma marola daquele oceano de coisas. E o João Gilberto tem de ser um guerreiro brutal para chegar além daquilo no ambiente brasileiro. E não é uma coisa de eu estar dizendo isso porque eu sei que o João é brasileiro e o Chet Baker é americano. Isso transparece na música, na voz, no canto, na seleção, no repertório, no que foi acontecendo, no passar dos anos. O João foi ficando cada vez mais radical, mais profundo.

Foi lá mesmo, em Salvador, que conheceu outro guerreiro baiano, mais tarde parceiro de música e de vida:

- O Gil já aparecia na televisão, à tarde, num programa local, tocando violão e cantando. Eu adorava. O Roberto Santana prometeu, então, me apresentar a ele. Um dia, em 63, eu ia andando pela rua Chile e o Roberto Santana vinha de lá, com o Gil. Aí, nos apresentou, eu fiquei assim meio tímido. Mas não durou três minutos a timidez, porque eu vi que o Gil era super boa praça, limpeza, não causava constrangimento nenhum. Ficamos imediatamente amigos mesmo, muito amigos. Foi muito rápida a coisa da gente gostar um do outro.

Começou, então, a convivência que iria influir decisivamente na música popular brasileira. Encontravam-se sempre, ficavam tocando violão e cantando:

- Eu gostava da convivência e de aprender vendo-o tocar o violão. Aprendi como é que se faziam as posições. Ele me impressionava com a facilidade com que tirava as harmonias das músicas da Bossa Nova. E eu mal sabia fazer dó maior, lá menor, aquelas coisas básicas do violão quando a gente aprende assim mal aprendido. Aprendi vendo o Gil tocar. Não é que ele me explicasse. Eu ia olhando e entendendo com a cabeça as funções que aquelas posições exerciam no encadeamento harmônico das canções.

Um pouco depois, outra pessoa entra na roda:

- A Maria Laís, que era professora de dança me disse: "Caetano, eu conheci uma menina que canta lindo e estou louca que você a ouça cantar. Ela é vizinha de uma aluna minha e vou pedir para minha aluna marcar o encontro. Elas são jovens, as mães não deixam sair de noite, mas quero ver se marco um encontro". Um dia, ela marcou no teatro. Fui lá e encontrei a tal aluna. Era a Dedé. O alvo da Laís era que eu conhecesse a Gal, Dedé era apenas a intermediária. Mas eu nem me interessei muito pelo encontro porque adorei a Dedé e fiquei pensando assim: "Puxa, essa menina devia ser minha namorada". Pensei mesmo. Olhei para ela e achei isso. Imediatamente. Gostei dela, achei a maior graça, toda animada, direta, linda. Era linda, tinha dezesseis anos.

E o tal encontro com Gal, aliás, Maria da Graça, a Gracinha?

- Ela veio com Dedé, toda tímida, roendo as unhas, encanada, esquisita. Aí Dedé mandou que ela pegasse o violão e cantasse. E ela tocou e cantou Vagamente: "Só me lembro muito vagamente...", de Menescal e Bôscoli. Ainda não existia o disco da Wanda. E foi engraçado porque a gente botou o apelido dela Gracinha Vagamente. Depois, saiu o LP da Wanda que se chamava Wanda Vagamente. Mas a Gal cantou e, quando acabou, foi um choque. Aquela voz já era essa voz, cantando lindo. Eu disse: "Você é a maior cantora do Brasil". Ela: "O quê?" E eu: "Você é a maior cantora do Brasil, a maior de todas já, não tem dúvida, você é o máximo”.

O mito Gal Costa nasceria mais tarde:

- Gal é o nome dela. Tem gente que diz que foi inventado por Guilherme Araújo. Não foi não, é mentira. Toda mulher baiana que se chama Maria da Graça ou das Graças, no plural ou no singular, tem automaticamente o apelido de Gal. Gal é o nome dela, sempre foi o nome dela. A idéia de botar Gal Costa, de botar um dos sobrenomes como nome artístico, é que foi do Guilherme. Ele achava que Maria da Graça era nome de fadista, não condizia com uma coisa moderna. Nós achávamos Gal lindo, achávamos que poderia ser só Gal. Mas Guilherme odiava e odeia até hoje nome sem sobrenome, acha cafona, que não é chique. Foi ele que botou Moraes Moreira, Jards Macalé e Gal Costa.

Bethânia, Gal, Gil e Caetano – estavam prontos os Doces Bárbaros que, muitos anos depois, cheios de felicidade e com amor no coração, entrariam nas cidades, rasgando a manhã, avançando através dos grossos portões. Ali em Salvador, em 1964, ano em que a ditadura se instala no país, o quarteto se junta com Tom Zé e faz o show Nós, por exemplo. Era a arrancada para o profissionalismo. Gil já pensava em mudar para São Paulo. Caetano foi ao Rio para acompanhar a mana Bethânia, convidada para substituir Nara Leão, estrela e musa da Bossa Nova, no show Opinião. Voltou a Salvador decidido:

 - Olha, Gil, eu pretendo fazer outra coisa. Vou ficar por perto, quero acompanhar vocês, mas Bethânia já está lançada, Gal necessariamente será uma cantora e você é que é o homem da música mesmo. Eu vou gradativamente me afastando. Não quero fazer música, não me sinto músico, não acredito em mim como músico.

Mais tarde, logo depois do Tropicalismo, Caetano teria uma recaída e, de novo, quis deixar a música para fazer cinema e bolar projetos para Bethânia, Gal e Gil:

- Eu queria fazer outra coisa para não entrar no trabalho direto com música e não atrapalhar os músicos de verdade. Mas o Gil, nas duas oportunidades em que lhe falei disso, me dissuadiu desesperadamente. Reagiu nas duas ocasiões como se fosse uma coisa inaceitável. E me disse claramente que, se eu não fizesse música, ele deixava de fazer. Então, eu pensava: para mim, Gil é a própria música. Então, era a música me dizendo que eu tinha que fazer alguma coisa.

E fez. Afinal, quando levou aquele primeiro papo, na volta do Rio para Salvador, Caetano já era um compositor e, dentro de pouco tempo, lançaria Domingo, um disco lindo e delicado, dividido com a ainda Maria da Graça. Mas não o encantam os ecos joãogilbertianos em Domingo:

- Domingo é sub-Bossa Nova. A única coisa que não é sub ali é a voz de Gal. É bonito, tem alguma graça, mas desde aquela época eu achava isso mesmo.

Caetano preparava o salto para o Tropicalismo. Já queria muito, mesmo que parecesse ser modesto:

- Tem uma história que o Augusto de Campos conta sobre música, um modo de interpretar a atuação de Erick Satie na história da música, que é como se o Erick Satie tivesse visto que o Debussy já tinha feito tudo. Eu acho que o Erick Satie chegou mesmo a dizer isso, não sei, ou é o Augusto que diz ou é alguém que diz e o Augusto me contou, mas, enfim, o Satie viu que, naquela direção, a música de Debussy era tão deslumbrante, concebida, tão realizada, que ele tinha de fazer o avesso. Ele parte para uma simplicidade exagerada, depois para a entrada do ruído, para as dissonâncias, para a ampliação do trabalho com as notas musicais no Ocidente. De certa forma, guardadas todas as proporções e as diferenças também, o lance do Tropicalismo em relação à Bossa Nova foi isso. A gente não queria ficar fazendo sub-Bossa Nova depois do João e do Tom.

É de pouco antes de Domingo, ou quase simultâneo, o reconhecimento do trabalho da Jovem Guarda, cuja principal expressão era o programa semanal comandado por Roberto Carlos na TV Record. Depois da descoberta da música norte-americana em Salvador, "a próxima coisa fortemente determinante" para os ouvidos de Caetano, alertados pelas antenas ligadíssimas de Maria Bethânia, foi a Jovem Guarda:

- Era um tipo de poesia que inconscientemente surgia, ali, mais forte do que o que a gente estava fazendo na área que hoje se chama música popular brasileira.

Curtir esse novo amor exigia uma certa disposição para a briga. Era um tempo de guerra ideológica, Deus e o Diabo movimentavam hordas maniqueístas no mundo da canção, que começava a se dar conta da existência de uma realidade chamada mercado:

- Houve uma onda na TV Record de fazer uma tal Frente Ampla da Música Popular Brasileira contra o iê-iê-iê e a música internacionalizante. Era uma questão de marketing do Paulinho Machado de Carvalho e da TV Record, mas os artistas se imbuíram daquele nacionalismo e aquilo tomou também os estudantes. O programa, com esse nome de Frente Ampla da Música Popular Brasileira, foi bolado para substituir o Fino da Bossa, que estava perdendo audiência, de porrada, para a Jovem Guarda.

Convidado por Gil, que se revezaria com Geraldo Vandré, Elis Regina e outros artistas no comando semanal de cada edição do novo programa, Caetano foi a uma reunião com Paulinho Machado de Carvalho – sem direito a voz e voto, apenas para ouvir e depois aconselhar o amigo. Não esquece, até hoje, a participação de uma suave guerreira:

- Todo mundo fez imensos discursos, aquela retórica inflamada e nacionalista, até que a Nara Leão falou e disse umas quatro ou cinco palavras super-objetivas. Lembrou ao Paulinho que ele queria fazer o novo programa “porque a televisão tem que manter a audiência" e trouxe as coisas para um realismo que, aos olhos daquelas pessoas esquerdizantes, parecia algo completamente absurdo, alienado, era uma coisa meio surpreendente.

Na saída, Caetano conversou muito com Gil:

- Para mim, quem falou tudo foi a Nara Leão.

Caetano, já desconfiado do ranço passadista daquele tipo de manifestação, ganharia ainda mais força de Nara quando, juntos, viram passar em frente ao Hotel Danúbio, onde estavam hospedados, a passeata de artistas e estudantes que trombeteavam as virtudes da música brasileira e os pecados do iê-iê-iê rumo ao Teatro Paramount, da Record.

- Eu disse: "Nara, acho isso esquisito". E ela: "Esquisito? Isso é um horror. Isso parece uma passeata do Partido Integralista. Isso é fascismo". Aquele comentário me deu coragem porque eu sentia que não gostava daquilo, já tinha gostado do modo como ela se comportou na reunião, não fui à passeata, não iria mesmo, mas não tinha uma formalização crítica tão nítida do que era aquilo. Hoje, é muito óbvio, mas na hora não era tão óbvio assim. É só ver quantos artistas participaram. O Gil foi, o Chico Buarque fez uma presença, mas a Nara teve clareza.

Foi ali, inconscientemente, que Nara Leão marcou seu embarque no trem que viria a se chamar de Tropicalismo:

- O que ela falou me deu uma segurança em relação àquele negócio que eu e Gil planejamos fazer um ataque interno no dia do programa.

Era mesmo um tempo de guerra e de guerrilhas no show-business:

- Bethânia, que era quem gostava mais do Roberto Carlos e quem mais tinha feito minha cabeça e a do Gil para atentarmos para a Jovem Guarda. Adorava a música Querem acabar comigo. Eu escrevi um texto violento a favor da força cultural do Roberto Carlos. A idéia era que ela, de minissaia e bota, lesse o texto e cantasse Querem acabar comigo no programa.

Não houve humor na reação:

– Isso, não sei como, chegou aos ouvidos do Geraldo Vandré, que também estava hospedado no Hotel Danúbio. Ele teve um verdadeiro ataque. Veio ao quarto da gente, esmurrava o ar, dizia que ia quebrar tudo, garantia que aquilo não ia acontecer. Foi uma coisa tão violenta, uma coisa tão louca! Houve uma reação geral e a Bethânia ficou assustada, terminou se retraindo. A idéia se diluiu, alguma coisa ficou, não me lembro se saíram a canção, o texto e ficou só a roupa, se saíram o texto, a roupa e ficou a canção descaracterizada, meio sumida, ou se ficou só a roupa ou algo da roupa. Ficou muito pouco. Ficou um vestígio imperceptível. Esse ia ser o primeiro impacto do Tropicalismo. Ia ser uma superporrada tropicalista.

Já não faz mal que não tenha sido naquele instante. Outros sons, para muito além do iê-iê-iê simplificado da Jovem Guarda, zuniam em outras cabeças. Foi nessa época que Gil chamou a atenção do parceiro de aventura para a música dos Beatles:

- Já conhecia, não desgostava, mas foi o Gil que começou a falar dos Beatles como uma coisa moderna, um lance da cultura de massas, uma coisa forte e emergente em contraponto à fraqueza da chamada MPB na ocasião. E coincidiu do Gil começar a falar do Beatles, com este tipo de visão, na véspera da saída do Sergeant Pepper's Lonely Hearts Club Band. Foi uma dentro total. Parecia que o disco era a confirmação de tudo aquilo que a gente havia percebido. Na verdade, para ser sincero, era como se a gente quisesse fazer aquilo, era como se tivesse visto que o que eles significavam tinha de dar uma coisa como aquela. E a gente ia fazer também alguma coisa assim, mas no nosso lance, com a música brasileira, com o tango, com Vicente Celestino. Mas a gente não sabia que eles mesmos iam fazer uma coisa tão consciente do que era aquele papel que eles representavam.O disco nos animou e a gente saiu arrepiando.

Outros passageiros continuavam embarcando para a viagem rumo ao Tropicalismo. Ao vigor da Jovem Guarda, junta-se o rigor da poesia concreta. Os baianos conhecem e convivem com os irmãos Campos, Augusto e Haroldo, e Décio Pignatari. Novas gentes, novos sons:

- O Rogério Duprat era ligado a esse pessoal por causa do negócio de Música Nova, aquela experiência de modernos grupos musicais de São Paulo, de que eu não tinha nem notícia, mas fiquei conhecendo através dos poetas concretos. Então houve uma aproximação meio por aí e o Rogério ficou mais ligado, no início, ao Gil, com quem se entendia melhor, porque ele era mais musical, mas tão interessado no meu trabalho e no resultado das coisas em geral quanto no Gil. Foi ele que aproximou os Mutantes do Gil e de nós. E botou os Mutantes no arranjo de Domingo no Parque. Aí, deu a base do som tropicalista: Gil, Rogério Duprat e Mutantes.

Curiosamente, não há a marca de Rogério Duprat, tão forte e inconfundível no LP coletivo Tropicália, no primeiro disco individual de Caetano. Outros integrantes do erudito Música Nova, como os maestros Júlio Medaglia, Damiano Cozzella e Sandino Hohagem, trabalharam com ele. A parceria com Rogério Duprat ficou para mais tarde, quando Caetano já estava confinado em Salvador, de partida para Londres, e mandava para o maestro arranjar em São Paulo as fitas que gravava só com voz e violão, tocado por Gil. Era o disco branco, de despedida. Mas Duprat foi sempre importante:

- Ele foi o mais bacana desses caras de música da área erudita que se aproximaram da gente. E foi o que mais próximo ficou e o que mais entendeu e se interessou pelo nosso trabalho. E é uma das pessoas mais direitas que eu já conheci, muito íntegro, muito bacana mesmo. É muito radical, mas ao mesmo tempo é uma pessoa até muito tolerante com as outras.

O Tropicalismo já era uma viagem sem volta. Junto com os Beatles, depois da descoberta da força da Jovem Guarda, outros sons do rock internacional invadiram a cabeça e as preocupações dos baianos, que iriam realmente arrepiar o marasmo da música popular brasileira naqueles anos, primeiro com Alegria, Alegria, de Caetano, e Domingo no Parque, de Gil, e depois com É Proibido Proibir, de Caetano, e Questão de Ordem, de Gil. No meio, a criação coletiva que era uma bandeira desfraldada: o LP Tropicália ou Panis et Circensis.

A música brasileira nunca tinha levado susto tão grande. Mas que outro resultado poderia dar aquela mistura de sons que habitava a cabeça de Caetano Veloso desde a infância em Santo Amaro da Purificação e que agora era alargada pelo que de mais novo faziam os músicos populares em todo o mundo?

- Quando entraram os Beatles, entraram os Rollings Stones, The Mothers of Invention, Bob Dylan. Eu ainda morava no Solar da Fossa, no Rio, mas ia e vinha a São Paulo. Quem me apresentou uma porção de coisa dessa área, na época e depois, foi o Antônio Peticov. Me apresentou Traffic, Cream, Jimi Hendrix. Também em São Paulo, tomamos contato com os Mutantes, que conheciam profundamente a música dos Beatles. Eu nunca cheguei a conhecer a música dos Beatles como eles conheciam. Adoro, mas não sou especialista em nada. Não sei nada muito, não sei nada tudo de uma coisa.

Foi a época de outro fascínio:

- Nessa altura, ouvi muito Bob Dylan, mas não entendia nada de inglês. E o inglês dele é rápido e difícil. Os Beatles foram mais presentes também porque era mais fácil entender as letras. Eram mais pop, tinham mais clareza, representavam uma coisa mais rigorosa. Bob Dylan era um gênio, mais inteligente, mais informado, mas não tinha um design de coisa facilmente visível. É muito bonito, mas não tem aquele design de modernidade, aquela economia que os Beatles tinham. Talvez Bob Dylan seja o músico de rock-and-roll que tenha mais textura, naquele sentido a que Mick Jagger se refere como existente no jazz, na música erudita e não freqüente no rock. Mas os discos dos Beatles são um show de design sonoro. Aquilo me informava mais. Bob Dylan não me levou para perto de uma poesia moderna, rigorosa, nítida, desvinculada da idéia de genialidade confusa e obscuridade romântica. Os Beatles, sim.

Numa época de tantas descobertas e fascínios, há um encontro que poderia ter sido um desencontro:

- Quando Milton Nascimento apareceu em São Paulo, o Gil caiu duro. Eu, sinceramente, no meio do festival, a orquestra tocando, um monte de gente em volta, não percebi aquela beleza. O Gil, com o ouvido musical, ficou falando: "Isso é que é, esse cara é o máximo". Fez a Elis Regina gravar a Canção do Sal. Buzinou no ouvido da Elis violentamente. Ele percebeu rápido que o Milton era uma coisa grandiosa. Foi logo na música. O Milton foi logo música para ele. Para mim, foi a pessoa. A pessoa chegou antes do que a música.

Os dois – ou os três – tinham posto os pés na estrada, mas em trilhas diferentes:

- Não é fácil ouvir o Milton a primeira vez e também não é fácil ficar ouvindo muito. E é lindo. Eu reouvi agora porque fui botar a canção Cais em meu show e ouvi para aprender, tirar a harmonia, passar para os músicos. Peguei o long play duplo e fui ouvindo. É deslumbrante, tem tanta canção linda, coisas lindas, o jeito, tudo. Eu já achei que era uma coisa de peso na altura em que o álbum saiu, mas eu não tinha essa clareza. Eu não sabia onde colocar aquilo criticamente. Aquilo era lindo, mas não estava em nossa lista de interesses nos anos sessenta. Parecia que a música tinha terminado e aquilo ainda era música.

Milton andava por um caminho muito pessoal, "fazia outra coisa, propunha um outro programa":

- Não é que ele pensasse nisso, mas o que ele fazia propunha uma outra coisa, que realmente se desencadeou. E não necessariamente tudo o que se liga com aquilo e os interesses que se interligam dentro daquele mundo são as coisas que mais me interessam. Por exemplo: eu não sou um grande ouvinte do Weather Report ou de fusion-music em geral. Pelo contrário: tenho um pouco de dificuldade de aguentar esse tipo de coisa, essa música que é de gente jovem suficiente para estar acostumada com rock, mas meio que contrabandeia o jazz pelo rock, contrabandeia o rock pelo jazz.

Nem é propriamente da química que Caetano desgosta:

- É da música que resulta que eu não gosto muito.

Afinal, misturar é também uma de suas especialidades:

- Na verdade, a gente faz isso, bota umas coisas no lugar das outras, faz contrabandos outros.

Mas Milton paira, único, sobre tudo isso:

- Ele tem uma coisa que levou esses músicos todos a desbundarem no mundo inteiro, que é sem dúvida o que foi visto imediatamente por Gil e o que eu percebi na pessoa dele e é aquilo que transparece na relação do Brasil com ele, como notou Rogério Duarte quando disse: "O Milton é um mistério que o povo brasileiro soube decifrar". É incrível. Ele é rico musicalmente e tem todo esse lado de fusion que uma grande ala de uma geração estava querendo e precisando, mas é superatávico, é uma pessoa muito única, muito sozinha. A figura, a história, a formação pessoal e cultural de Milton resultam numa coisa única. Ele traz uma coisa atávica da formação do Brasil, uma coisa dos cantos gregorianos, dos negros, a gente vê nele a cultura católica se armando, vê todos esses fantasmas. O timbre de voz, o falsete do Milton já dizem tanta coisa. É uma sereia, uma sereia que te leva a um lugar pagão e católico, a um meio misterioso de viver. Milton são tantas coisas.

Nisso, nessa quantidade enorme de uns e um, por mais distantes, como eles se parecem! Eram bem diferentes, porém, os seus caminhos no fim dos anos sessenta.

Depois de pregar um susto na música popular brasileira, Caetano e Gil levam outro muito maior, armado pelos podres poderes dos ridículos tiranos de plantão naquele final de década: a cadeia e o exílio.

A caminho de Londres, Caetano manda notícias de Lisboa, pelo Pasquim:

– Eu agora também vou bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelos menos mais clássicas e, de qualquer forma, outras.

Escapole de Londres para fazer um programa de televisão com Gal e João Gilberto, aqui no Brasil, e aproveita a temporada no exílio para acrescentar dois discos ao currículo. Tinha deixado mais um antes de embarcar.

Quando volta definitivamente ao Brasil, começo de 1972, é um cidadão do mundo, como se ter ido fosse mesmo necessário para voltar. Faz um disco e um show com Chico Buarque, um parceiro tão diferente e tão próximo, de quem tantos amigos quiseram apartá-lo enquanto rolavam "aqueles projetos totais de transvaloração dos anos sessenta":

- Eu tinha discussões com pessoas próximas, nunca com Gil, que jamais teve essa coisa, mas com pessoas que faziam música e outras que não faziam, mas que falavam do Chico, durante o Tropicalismo, como se fosse uma coisa passada. Eu não achava mesmo isso. Nunca achei. Eu achava que aquelas nossas informações eram uma virada importante, mas provisória, que aquelas coisas todas iam reaparecer depois, reavivadas até. O que era realmente lindo ia reaparecer de uma maneira mais afirmada, inclusive o Chico. Eu achava mais bonito as coisas que ele fazia do que o que eu fazia, em muitos sentidos: adequação das palavras, uma coisa mais límpida de objeto bem acabado e equilibrado, como o Chico sempre fez e eu não estava fazendo. Eu achava absolutamente necessário que estivesse aquela pessoa, ali, segurando aquilo.

Quando depois entra no estúdio, é para gravar Araçá Azul, paradoxalmente um disco muito relax e bastante experimental, que na época assustou os fãs e principalmente os lojistas, mas acabou sendo redescoberto e relançado já nos anos oitenta.

Redescobrir Caetano Veloso é uma espécie de rotina nacional. Há pouco tempo, quando ele voltou a cantar E Proibido Proibir, de que nunca falou com muito orgulho, houve quem achasse que até o próprio Caetano havia aderido à mania de redescobri-lo. Não foi nada disso:

- Não mudei de opinião. Não acho É Proibido Proibir uma grande canção. Gosto daquela coisa de sim e não, do jeito que está ali, mas é uma canção bem fraquinha. Ela ficou legal pelo que aconteceu em torno dela, mas não pela canção em si. Tanto que nunca foi um sucesso. Agora, cantar de novo também é engraçado porque ela vinha sendo só pensada como um pretexto para aqueles discursos, discussões, vaias, escândalos e, de repente, passados muitos anos, eu canto num show e ela fica ali. Aí a gente pensa nas coisas e pensa na canção, meio que limpa a canção daquilo e também torna a pensar naquilo. Enfim, acho que teve uma graça. Mas não acho uma grande canção.

Pode ser, mas Caetano freqüentemente exagera quando olha criticamente sua própria música. Ele reconhece que tem feito, depois de Araçá Azul, um movimento de retorno ao território que tanto ama na música popular, o das canções. E se encara com naturalidade os elogios a tantas e tantas obras-primas, gravadas desde Domingo até o último Caetano, implica com algumas preferências do distinto público:

- Não gosto tanto de Velô, gosto mais de Caetano. Aliás, quando eu acabei de fazer o Velô, já sabia que gostava mais de Uns, que é o disco imediatamente anterior, o que não é uma coisa muito freqüente de acontecer com um artista. Tem uma porção de coisas no Velô que, para mim, pesam. Infelizmente, não sou suficientemente violento para romper coisas que eu vejo. Todo disco meu é sujo. Não sou violento. A minha visão é mais radical, mas a minha ação é muito comprometida. De novo, João na cabeça. Caetano quase inveja o radicalismo brutal de João Gilberto na hora de gravar ou cantar. Até o amigo Wally Salomão já disse que o projeto de Caetano Veloso é ser o João Gilberto de sua geração. Será?

- Eu não tenho a concentração do João Gilberto. Sou disperso em muitas coisas. O João se dedica mesmo a isso. Isso é tudo dele. E depois ele tem muito mais talento musical do que eu. A música flui mais nele. Mas eu tenho essa admiração pelo João Gilberto. Então, de certa forma devo vir procurando também isso, já que adorei João Gilberto tanto, desde que ouvi. Alguma coisa disso deve também acontecer comigo.

Caetano vê seu trabalho de compositor com um certo distanciamento, temperado com a modéstia tão freqüente em sua autocrítica, para surpresa dos críticos oficiais:

- A minha música tem um aspecto muito marcante da música de carnaval e dos jingles. São pequenas canções comemorativas de alguma coisa, têm que se utilizar de elementos bastante redundantes da forma musical, bastante conhecidos, têm que ter uma marca melódica forte, difícil de esquecer.

Para algum desavisado que possa achar suas letras mais elaboradas do que suas músicas, uma surpresa do poeta Caetano Veloso:

- Se eu fosse escrever poesia, botar no papel, fazer poesia para livro, não seria o que eu faço com letra de música. Em letra de música, eu uso muito os recursos mais gastos do encantamento poético: a rima, a métrica, uma certa elegância prosódica, mas também uma certa deselegância.

Mas, atenção, pois nem tudo é o que apenas parece:

- Também tem todo um lado que não é sớ isso. Tem um lado de ruído em tudo. Quer dizer: meu trabalho tem algo de hino, da música do carnaval e do jingle, mas não é só isso. Eu não faço este tipo de música todo o tempo e nenhuma das minhas músicas é apenas isso, mas este aspecto é trinecessário. E é preciso que se fale, que se saiba disso e se saiba também que eu sei disso. Mas também há o lado que talvez esteja mais perto da busca daquilo que eu chamei Nino Rota do que deste aspecto jingle da canção de carnaval.

São complexos os caminhos em sua música, os sons dos carnavais que ainda martelam e encantam a cabeça deste baiano que curte a folia de maneira personalíssima:

- Eu adoro, às vezes, músicas que ouço na Praça Castro Alves. A gente fica num estado bem diferente. Eu não bebo, mesmo no carnaval. Às vezes, só na terça-feira eu bebo. Mas não gosto de beber porque tenho ressaca. Não bebo, não tomo droga, não cheiro lança-perfume porque uma vez, quando tinha 14 anos, em Santo Amaro, cheirei, fiquei morrendo de medo, odiei. Mas a gente fica num estado mental muito diferente, estando dentro da Praça Castro Alves, estando dentro do carnaval. Não precisa beber mesmo. Fica numa excitação! São tantas as solicitações, o ritmo, alguns medos, uma alegria, uma mistura, é uma sensação indescritível, que eu gosto, eu preciso, que todo ano quero voltar a sentir. Às vezes, vou à praça e nem sei direito o que é. Aí, chego lá e digo: “é isso". Sinto qual é o lance. É um estado mental diferente.

Vem de longe essa emoção cada vez mais forte:

- Isso acontecia também quando eu era menino em Santo Amaro. Mas, na Praça Castro Alves, é mais forte, porque aquilo é uma coisa enorme. Às vezes, ouço uma melodia que já conhecia e ela ganha uma outra dimensão. Às vezes, eu choro. Sempre eu choro no carnaval, só por causa da música.

Esta carga de emoção tão dionísiaca, que transforma o carnaval baiano numa celebração quase íntima para Caetano, não o impede de enxergar com lucidez a importância cultural da festa. Ele se alegra também porque o carnaval da Bahia se rendeu às facilidades turísticas:

– Eu sempre quis que o carnaval baiano fosse uma referência estética no Brasil. E tem sido, mais do que realmente um atrativo turístico. Nesse sentido, até caiu. Houve um primeiro momento, no início dos anos setenta, depois que nós voltamos de Londres, em que era geral o fascínio de ir passar o carnaval na Bahia. Mas, naquele tempo, havia mais turistas desbundados do que hoje, havia mais desbundados em geral do que há hoje. Então, muita gente ia. Mas o carnaval da Bahia vem sendo uma referência forte para quem faz música e se interessa por cultura no Brasil e, nesses anos todos, não se tornou uma coisa como é o carnaval do Rio e até mesmo chegou a ser o carnaval do Recife, que ainda é mais ou menos considerado tradicionalmente como uma atração turística. Isso é maravilhoso.

As bandas e os grupos baianos, que agitam o carnaval, refazem a ligação perdida entre a cidade de Salvador e a cultura de fora:

- Eles promovem a redesprovincianização da cidade e sua reavaliação como importância cultural no Brasil e no mundo, uma coisa que Salvador já teve, tem e pode vir a ter mais efetivamente. Nos anos sessenta, essa visão desprovincianizada foi estimulada pela Universidade, através do reitor Edgar Santos e de alguns intelectuais que foram inteligentes o suficiente para participar disso de uma maneira aberta. Depois do golpe de 1964, estranhamente ou não estranhamente, essa força cultural da Bahia começou a aparecer do outro lado, do lado não-elite, do lado popular, do lado negro. Foi a Bahia negra que cresceu e que espalha a presença da cidade no Brasil e no mundo. Você vai a Nova York e conversa com as mais importantes figuras da música popular do mundo e do que é que eles falam? Do Olodum, da banda Reflexus, do Araketu, do Ilê Aiê e do trio elétrico.

Alegra-se também Caetano ao constatar que o parceiro Gilberto Gil é uma ponte entre estes dois momentos tão distantes que marcam a abertura da cultura baiana para as influências do mundo:

- O Gil, curiosamente, representa as duas forças que têm essa visão da Bahia desprovincianizada. Ele tem ligação direta com os movimentos da década de sessenta e com a efervescência da música negra de agora. Ele está diretamente ligado, por exemplo, ao renascimento dos Filhos de Gandhi, por causa daquela canção e da participação pessoal dele no bloco. E por juntar essas duas pontas que só a mera possibilidade da candidatura dele à prefeitura já tem um enorme valor simbólico.

Mas o caminho percorrido por Gil também semeou dúvidas que afligem o parceiro Caetano:

- Hoje, eu fico espantado como o Gil, de uma certa forma até mais do que eu, abdicou da música. Não estou dizendo isso porque agora ele entrou para a política, pois isso não o fez parar de fazer música. Mas é que ele, que é um músico de verdade, procurou sempre ficar além da música ou aquém da música ou ao lado da música – enfim, fora da música. É uma coisa estranha. Falo dele não mimar o talento musical que tem, de escamoteá-lo até boicotá-lo. Isso tem a ver com a atitude marcadamente metalinguística que apareceu na música e nas artes com as pessoas de minha geração. Gil tem sido um caminho para o comentário da música popular, o comentário da produção industrial da música. É um sair para fora da música, tal como aparece em alguns dos seus discos de um tempo para cá. Ele quer testar, experimentar, comentar e ao mesmo tempo criticar. Ele procura levantar o nível de atenção, no Brasil, para essa coisa da produção, do negócio, das relações da música com o capitalismo moderno, sempre com uma tirada crítica. É uma coisa difícil de acompanhar e muito rica porque há algo de moderno em tudo isso, mas é como se um grande músico carregasse, de certa forma, algo de antimúsico. É complexo, não é uma coisa inteiriça como Milton Nascimento, como Tim Maia ou como Jorge Ben.

Caetano lamenta, mas se fascina:

- É uma coisa com muitos níveis que precisam ser lidos ao mesmo tempo, que se comentam uns aos outros. Pode ser que não crie uma firmeza e uma harmonia constantes, num caminho determinado. Ele próprio me disse, há alguns anos, que quer terminar batendo um tambor, o mais simples e primal possível. Ele quer que a música dele chegue a isso.

Tão reticente em admitir-se músico, Caetano também se reconhece na viagem paramusical de Gil:

- É uma coisa que eu também tenho e que nós, de uma certa forma, representamos no Brasil desde que aparecemos. A instância crítica está muito exposta e presente na produção. Mas eu sou mais um não-músico, que me dediquei a trabalhar com música, e o Gil é um supermúsico que se dedicou a escapar dela para poder olhá-la de diversos ângulos.

Tão diferentes, tão iguais. Ou será: tão, iguais, tão diferentes? Une-os, até onde essa estrada do tempo vai dar, algo além – ou aquém ou ao lado? - da música. É a paixão pela modernidade, que em Caetano se revela, cristalina, no que ouve, vê ou curte nos últimos tempos:

- Eu gosto muito de todo este renascimento do rock, do fim dos anos setenta até esses anos oitenta, que começou com a new wave, cresceu com os punks na Inglaterra, bateu aqui, renasceu no mundo todo. Eu me sinto bem com isso, eu me sinto bem quando acontecem essas coisas.

Gostou do Camisa de Vênus logo de cara, quando viu um dos primeiros shows do grupo em Salvador, adora os Titãs, mas tem uma preferência:

- O disco de rock brasileiro que mais me toca é o primeiro do Barão Vermelho. É o que mais me impressionou quando saiu. O disco é lindíssimo, é assim fundo-de-garagem, muito mais do que os que hoje são produzidos para parecerem fundo-de-garagem. É mesmo, foi gravado em duas noites, é lindo.

Paixão mesmo, daquelas de fazer bater mais forte o coração e mexer com a cabeça, é outra:

- Adoro o Prince. Logo que vi, gostei. É uma coisa que só podia soar agora, não podia ter aparecido antes. Parece um resultado, muito verdadeiro, da situação cultural do mundo agora. Ele tem aquela coisa da tradição do músico negro norte-americano, mas com umas discrepâncias que dão um estranhamento que faz dele algo diferente do que é, por exemplo, o Michael Jackson, que é maravilhoso, ou Stevie Wonder, que é ainda mais maravilhoso. Mas ambos soam como sendo o aprimoramento, a modernização, o progresso de uma linhagem de música negra norte-americana, agradável, mas sem estranhamento, não se sai daquilo, não se sai daquele mundo e daquele agrado sonoro. Prince, não. Tem discrepâncias, até pela própria condição racial dele, que não é bem um negro americano comum.

Prince faz a ligação com outras referências musicais que encantam Caetano:

- A música e a postura artística dele são totalmente vinculadas às coisas de que eu mais gosto. Ele tem muita coisa que herdou do movimento punk inglês dos anos setenta. Ele tem a ver com Jimi Hendrix, com Little Richard, com Mick Jagger, com os Rolling Stones em geral, com a tradição negra americana do rhythm and blues, soul e funk. Mas isso tudo tem uma atualidade que imediatamente se percebe.

Prince é o exemplo máximo da presença e do significado que têm as conquistas do que se chama modernidade em mentes e talentos de artistas de massa, gente de baixo nível cultural em termos de formação acadêmica ou escolar ou mesmo livresca autodidata. Às vezes, eu brinco porque ele é over e digo: é punk- funk-rococó. São tantos milhões de coisas.

Outros músicos da vanguarda novaiorquina fazem a cabeça do garoto que, aos três anos, caiu na música embalado pela voz de Nelson Gonçalves:

– Achei o máximo o disco Greed, dos Ambitious Lovers, que têm uma ligação com o Brasil porque o Arto Lindsay viveu em Pernambuco, canta uma música do Paulinho da Viola, diz umas coisas em português e usa percussão de escola de samba em algumas faixas. É um disco deslumbrante, mas é bem branco, de branco que gosta de funk. É como se fosse alguma coisa entre o Prince e os Talking Heads, um lugar original encontrado a meio caminho desses dois pólos.

Os Talking Heads também o comoveram:

- Eu os admiro muito e adorei vê-los e ouvi-los naquele filme Stop making sense do Jonathan Demme, sobre o show. Acho o David Byrne, que eu conheço pessoalmente, um sujeito inteligentíssimo e com um jeito moderno, bacana. Mas já é um cara culto, diferente do Prince, que realmente arrebenta, extrapola, transborda.

Caetano gosta de outras coisas, mas sem entusiasmo:

- Eu gostei de Graceland, do Paul Simon, mas não tem riscos. É muito bonito, mas sem riscos, embora soe menos domado do que o Sting depois que saiu do Police. Eu gostava muito do Police e acho Sting muito talentoso, com uma voz linda. Mas eu vi o show dele em Paris, aquele Bring on the night, e achei tudo muito certinho, muito defendido. Tudo é o melhor: o melhor contrabaixista, a melhor seda, a melhor luz, a melhor corda, o melhor tecladista, o melhor baterista. Achei isso meio chato. Parece que ele telefona, tem na lista: "Quem é o melhor? Manda chamar". Eu fico muito mais entusiasmado vendo uma coisa como Stop making sense. Eu me lembro de Oswald de Andrade, que dizia algo assim: "fulano de tal erra em gramática, em ritmo, em estilo. Eu não erro em nada disso porque não me interesso por nada disso". O Sting não erra em nada disso, mas se interessa por tudo isso.

A mais atual chave da modernidade na música popular está mesmo com Prince, segundo Caetano:

- Ele inverte alguns conceitos intelectuais. Ao contrário de ser um exemplo de como as conquistas da modernidade vieram a se banalizar na cultura de massas, ele é a comprovação da assimilação profunda do que os grandes artistas de vanguarda do início do século fizeram. Ele dá a impressão de como, assustadoramente, o fundamento daquela vanguarda está sendo realizado hoje por algumas pessoas de grande talento. São pessoas que entraram em sintonia profunda com o fundamento do desejo em relação à arte e à vida daqueles pioneiros da modernidade. Não é um cara que conhece Duchamp, pensa sobre Picasso, o feito e o bonito. É uma pessoa genial, que parece evidenciar o que fundamentalmențe estava sendo mexido por aqueles artistas. É alguma coisa que virou vida e com a qual a vida tem de saber contar. E que, de volta, virou arte.

Assim é também, eternamente moderno, o garoto que, desde as margens do Subaé, amava João Gilberto mais do que os Beatles e os Rolling Stones, o cidadão de Santo Amaro da Purificação, de Salvador, do Rio, de São Paulo, de Londres, o companheiro de Dedé e de Paula, pai de um concretíssimo Moreno e de uma talvez Júlia, soma de tantos e tão variados sons e sotaques, tantos ele mesmo, tantos e único, indivisível cantor popular de um planeta chamado Brasil, um homem nu com sua música, afora isso somente amor.

Fonte: Songbook Caetano Veloso. Produzido por Almir Chediak. Lumiar Editora (1988).

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