Caetano Veloso entrevista Jaques Morelenbaum

Revista Domingo (1995)

Em Domingo Entrevista, Caetano Veloso pergunta e Jaques Morelenbaum responde. Juntos, fazem um bate-bola sobre música clássica e popular.

O fato de Jaques Morelenbaum ter se apaixonado por música popular na adolescência é a melhor coisa que podia ter acontecido à música brasileira. Muita gente tem se maravilhado ao ouvi-lo ao violoncelo nos shows de Tom Jobim, Egberto Gismonti e, para minha honra e orgulho, também nos meus. Mas nem todos os que ouvem minha gravação de Vete de Mi no rádio sabem que 90 % da beleza dessa faixa — como de tudo em Fina Estampa se devem a ele. Esse carioca internacional que cresceu ouvindo música erudita é uma das provas de que a bossa nova e o tropicalismo não se deram em vão.

O grande músico japonês Sakamoto conheceu Jaquinho por meu intermédio e, sem perder tempo, convocou-o para integrar o pequeno conjunto com que excursionaria. Gal acaba de fazer um álbum com ele. Não há quem não queira aproximar-se dessa combinação única de segurança e inspiração. Na conversa que se segue, só perguntei a Jaquinho coisas que eu realmente desejava saber dele e, apesar de nossa convivência, nunca tinha tido oportunidade (ou coragem?) de perguntar. Foi uma conversa tão boa quanto as que sempre temos despreocupadamente. Quase tão boa quanto sua música.

C.V.: Estreou o show da Paulinha, sua mulher, você regeu um concerto em Salvador, acabou de mixar o disco da Gal, está ensaiando a sua noite no Heineken Concerts e participa do Tributo a Tom Jobim em Nova Iorque. Você acha que está trabalhando demais?

J. M.: Estou trabalhando bastante. Não dá para não reconhecer isso. O corpo às vezes se recente, mas a realimentação é tão grande que dá vontade até de trabalhar mais. Todos esses projetos me enchem de prazer, de emoção e aí parece que é muito pouco.

Queria falar sobre sua relação com a música chamada erudita, da sua formação. Filho de maestro e instrumentista, você milita na música popular. Biograficamente, como se deu essa combinação de interesses? Que noção de fronteira tem para você essa divisão convencional?

Na minha infância só ouvia a música chamada erudita, vivia dentro do Teatro Municipal, onde meu pai trabalhava. Só que eu sempre soube através dos meus pais que a música erudita é toda fundamentada e inspirada na música folclórica, na música popular. Em 64 eu tinha 10 anos e os Beatles estavam a mil. Eu me apaixonei direto e no ginásio formei logo um conjunto. Eu tocava baixo elétrico e o pianista do conjunto era o Léo Gandelman, que estudava na mesma escola. Com a MPB tive uma aproximação tardia. Quando meus pais saíam, eu ia para a cozinha ouvir MPB no rádio da empregada. No final da adolescência comecei a curtir você, os baianos, o Gil, o Chico e muito o Milton Nascimento. Um dos primeiros artistas brasileiros com que me identifiquei foi o Milton. Depois vim a conhecer a bossa nova, mais profundamente o Tom. Você pega o Villa-Lobos, Bartók, Stravinsky, os russos e estão muito claras as raízes populares, a sede de buscar na fonte popular as inspirações todas. Então, eu não vejo fronteira nenhuma.

No dia que conheci João Donato, ele estava ouvindo Stravinsky, acho que A sagração da primavera, muito maravilhado. Anos depois, conversando com ele sobre música clássica e música popular, ele me disse assim: “Eu gosto mais de música popular porque a música popular boa só tem o bonito. E na música clássica a gente fica procurando o bonito, esperando. Às vezes tem o bonito.” Autores semi-eruditos, como eu ou Chico, que chegamos à universidade, ou Gil, fazemos música popular que pode aqui ou ali se referir à folclórica. Mas são uma forma de música elaborada com uma comunicabilidade mais fácil porque está ligada à sociedade de massa. Você frui numa escala macro a beleza das sinfonias? Eu, dada a minha ignorância, tenho dificuldade de saber se uma sinfonia está bem estruturada do início ao fim, em todos os movimentos.

Eu discordo um pouquinho do Donato. Em qualquer modalidade de arte vão ter os geniais, os medianos, os quase geniais, os medíocres. Alguns compositores geniais conseguem manter a tensão da beleza do começo ao fim e uns não. Quando ouço a sinfonia de um compositor genial, percebo, sim, a beleza geral. Mas realmente eu me lembro de garoto assistindo a concertos e louco para terminar um movimento, para começar outro e ver se melhorava. Existe a música maravilhosa porque é muito sincera e tem muito talento nas entranhas, e tem a que não é. Eu me acostumei a vida inteira a ouvir todos os estilos. O Donato é um que quando toca duas notas sai sempre bonito. É tudo essencial.

É verdade. O Donato fala como oráculo. Na verdade, parece que ele estava falando apenas da brevidade das peças de música popular. Quando alguém é genial naquilo e põe num tamanho tão pequeno, fica só o que é bonito ali. Não pode perder tempo em retórica musical.

Pelo próprio tempo musical. Quando você se propõe a compor uma canção, essa macrovisão é muito mais fácil. O conceito de fácil também é muito relativo, mas você olha para o todo de sua obra e ela tem uma duração pequena. O tempo que você se dedica a ela permite um detalhamento maior. Às vezes, até o próprio compositor erudito pode se perder porque está compondo uma peça de 25, 30 minutos. Talvez ele não possa ter o mesmo tempo de atenção com cada detalhe. É uma suposição minha. Talvez por isso se perca em devaneios. Ele está no meio, quer atingir o que vai chegar e o caminho não fica tão belo, essencial. Às vezes ele até propositalmente não faz tão intenso um momento para valorizar mais o momento intenso, que está para chegar. É como se estivesse construindo uma escada para chegar num ponto especial no Aleph do Borges.

Engraçado você falar em Jorge Luís Borges. Ele, que só escreveu histórias muito curtas, às vezes acha que o romance é uma forma hipertrofiada de manifestação literária. Não saindo do clima, queria saber mais a respeito de seu gosto em música.

Gosto muito de Brahms. Não sei se falo dele primeiro porque ele era taurino e eu também sou. Gosto muito de um compositor que não é muito conhecido, Samuel Barber. É raro ter um compositor erudito americano. Não vou falar de Bach e Beethoven... Andei de saco cheio de Beethoven.

Interessante. Por quê?

A formalidade dele é tão excessiva. Não sei. Talvez por já ter ouvido muito. Gosto muito de Bartók, Stravinsky. Amo Villa-Lobos. Saindo da música erudita, Miles Davis, Tom Jobim, Toninho Horta. Caetano Veloso, podia ter deixado por último, mas já estou falando. Agora eu vivenciei muito o Chico. Estou apaixonado pela obra dele. Piazzolla, Egberto Gismonti. Este é maravilhoso. Uns falavam do Tom ser o sucessor do Villa-Lobos. O Tom tinha tudo para ser: o tipo de visão, de enfoque, de como buscar o popular e elaborar em cima. Só que ele era preguiçoso para escrever notinhas. É curioso porque ele era um dos caras mais trabalhadores que já conheci. Mas ele não tinha muita paciência. A coisa de orquestração é meio trabalho braçal. Hoje em dia, com o computador está ficando mais fácil.

Mas ele não dominava.

Ele não tinha muito saco. Tom ganhou no Japão um teclado fantástico, que ficava parado. O João, filho dele, aos 7 anos ficava tirando som de explosão. Tom não encostava. Chamava de purrinhola. Mozart, que morreu com 30 e poucos anos, se tivesse nascido na época do computador teria composto sozinho tudo do que já foi composto. Porque realmente o computador é uma mão na roda. Fora o lado estético e o lado do gosto, preencher aquela partitura de 40 pautas para dar as cores todas de uma orquestra é cansativo. Tom tinha ânsia de compor mais as idéias do que as vestimentas. Voltando, o Egberto é que é sucessor do Villa-Lobos. Tem disposição e trabalha com computador. Ele está compondo muito para orquestra. Ele pegou o bastão do Villa-Lobos. Falando de gente nova, um cara que eu não conhecia o trabalho, apesar de sempre ouvir falar dos Titãs, é o Nando Reis. Tive a oportunidade de tocar numa música do disco dele e descobri um compositor com muita substância.

Eu cresci nos anos 60 e você nos anos 70, então você descobriu a bossa nova depois de já habituado aos Beatles, à música meio rock, meio pop, brasileira pós-tropicalista. Que impressão lhe deu a bossa nova?

Um deslumbre total. Você fala bossa nova, eu ouço Tom. A beleza estava toda ali. Me apaixonei profundamente de uma hora para outra. Foi no final dos anos 70, os anos de crescimento. Assisti a Orfeu negro pela primeira vez em Boston, nos EUA. E aí fui buscar a bossa nova com uma fome danada e comprei todos os discos.

Agora eu vou fazer a mesma pergunta que eu vinha fazendo, mas de uma forma mais reduzida: você tem uma preferência entre as sinfonias?

As quatro sinfonias de Brahms. Um maestro uma vez falou isso num ensaio. Ele contou que o pessoal de uma orquestra que ele tinha regido comentava: "Qual é a sinfonia de Brahms mais bonita?" Eles respondiam: "A última que a gente tocou." É o compositor das sinfonias.

E canções populares? Não precisam ser brasileiras.

Retrato em branco e preto. Uma canção que não acho que seja assim uma das grandes obras do Tom, mas que me emociona é Canta mais, bem ao estilo de Villa-Lobos. Sua simplicidade me comove. Uma que não é canção, mas que também é minha favorita é Um a zero, do Pixinguinha. É uma música que me acompanha. Não consigo sair de perto dela há 20 anos.

É sabido que Brahms foi uma espécie de, não digo reação às transformações, mas uma resistência das formas clássicas estabelecidas da música, provando sua pertinência apesar das subversões wagnerianas e pós-wagnerianas. Como você se sente em relação a Wagner e a tudo que se desencadeou a partir dele até a música de vanguarda, a música concreta e eletrônica, enfim?

Eu amo Wagner, adoro e quero reger muito Wagner na minha vida. Duas ou três vezes, tocando em orquestras, desabei de chorar, as lágrimas caíam no violoncelo. Uma delas foi há mais de dez anos, na abertura de Tristão e Isolda, no Municipal. Na segunda nota, comecei a chorar. Eu soluçava, o violoncelo mexia encostado no peito e eu queria me controlar para tocar direito. Em relação a essa resistência do Brahms, não tenho como discordar, mas a música é tão atemporal, estabelece tantos tempos diferentes no mesmo tempo, que hoje dou risada disso. Brahms estava no tempo dele e Wagner, mesmo sendo contemporâneo, estava em outro tempo. Brahms simplesmente era talentoso e fazia a forma de música com a qual se identificava e fazia muito bem. Wagner também. Em termos de movimento cultural, de marco temporal, não é tão importante.

Mas que o que Wagner fez teve conseqüências extremas é inegável...

Exatamente. A revolução é o que move. É o que anda para frente. Não sei se sou revolucionário, mas tenho uma identificação com a revolução. O que me chama para uma música é a integridade dela. Os dois têm uma sinceridade tão grande que não me importa muito, na hora de ouvir a música, o que ela representou. Não sou muito intelectual. Sou muito emotivo, sensitivo.

Trabalhando comigo, tenho notado que você considera desimportante o aspecto meramente técnico da solução. Isso é apenas uma ferramenta para você. Você não se detém na técnica, mas no resultado como criação ou revelação de emoção. É uma característica forte em você. Mais do que em 90% dos músicos com quem tenho trabalhado, embora eles não tenham seu domínio técnico. Me impressiona muito sua certeza de que o aspecto emocional da criação ou da percepção é mais importante.

É verdade. A parte técnica da música para mim é como uma coisa lúdica, um jogo de computador, um videogame. É uma visão. Eu utilizo isso o tempo todo, são ferramentas. Para mim é um adianto conhecer, mas vejo que isso não é a essência. A essência é a emoção.

Quando você trabalha com a gente, tecnicamente é o mais exigente possível. É capaz de ficar cobrando uma definição de afinação numa sílaba, num momento, mais do que todo mundo. É no entanto aquilo faz como um dever básico, é um lastro, não é um alvo a ser atingido.

Para mim, isso é um caminho. Fico preocupado com a transparência. A emoção precisa de uma transparência para atravessar, para chegar. Me incomodava muito nas produções musicais do Brasil nos anos 70 e parte dos anos 80 a despreocupação, o desleixo muito grande da parte técnica. Isso mancha a emoção. A emoção consegue furar porque é tão forte que chega de qualquer jeito. O Tom uma vez me chamou de "cientista”. (Risos) Mas muito por causa da minha exigência. Ele estava louco para terminar a gravação e tomar um chope e eu: "Repete mais uma vez." E ele: "Jaquinho, você é muito cientista." Fiquei com esse grilo durante anos, me policiando. Depois, com a cabeça fria, entendi o que ele estava querendo me dizer. E assumo: tenho convicção da necessidade de facilitar a audição. O ideal não existe então a gente tem que buscar o mais próximo que possa conseguir na nossa condição humana.

Eu componho e na verdade a minha vida profissional se justifica porque eu compus uma porção de canções que se tornaram conhecidas e muita gente gosta. Mas o que me dá mais prazer mesmo é cantar, porque aquilo você faz na hora. Você tem mais prazer em conceber arranjos, distribuir as vozes, compor estruturas musicais ou tocar o violoncelo?

O prazer, prazer mesmo, o orgasmo mesmo você consegue é tocando. O negócio sai do seu pulmão e vai lá para fora. É só tocando que você atinge o máximo ou chega o mais perto dele. Mas eu adoro, sempre adorei escrever, desde os 10, 12 anos que eu escrevia. A necessidade de escrever é a necessidade que a gente tem de ficar. E a necessidade de cantar e tocar é a de gozar.

Uma coisa é reproduzir, ter filhos, outra é ter o prazer sexual. Quer ver um compositor que eu gosto muito e quero saber sua opinião? Eu adoro Webern e tinha vontade de saber sua opinião sobre ele.

Não posso responder porque não conheço bem. Eu não busco. Eu comecei a estudar alguma coisa do dodecafonismo. Até usei uma série dodecafônica no disco da Gal Costa para representar a mentira no Samba do grande amor. Daqui a pouco vocês terão oportunidade de ouvir. Eu queria representar a mentira, o mote desse samba, e não sei porque me deu vontade de botar a série dodecafônica, talvez por ser tão racional.

Mas você sabe que Webern para mim é uma coisa linda?

Então vou ouvir. O Egberto fala muito do Webern. Está na hora de conhecer esse cara. As referências estão muito boas: Egberto e Caetano.

Então vai aqui uma sugestão de um pobre músico analfabeto em música que não sabe ler uma nota musical, mas que faz umas cançõezinhas.

Já que está me dando uma sugestão, vou te perguntar. Já ouviu Ligeti?

Não.

Então fica a minha sugestão.

Agora, na verdade estou lhe devendo é Brahms. É um desses grandes autores de quem não ouvi quase nada. Já me disseram mesmo que Brahms é o melhor de todos.

Você pode optar para começar pelas quatro sinfonias ou então a primeira sonata para violoncelo e piano.

Vou fazer isso e depois eu converso com você. Agora, sobre o Heineken Concerts, fiquei honradíssimo de você me convidar para a sua noite, mas sei muito pouco ainda do que é possível que nós façamos juntos.

Inclusive hoje (N. da Red.: o encontro aconteceu domingo passado) é o nosso primeiro ensaio. Você não sabe o que vai acontecer. Quando eu convidar você para entrar, tô pensando em fazer duas músicas contigo e o Sakamoto juntos. Uma delas é a Lindeza, que me une a você, porque é sua, me une ao Sakamoto, porque foi através dela que eu o conheci, ouvindo o arranjo que ele fez para o teu disco Circuladô, o primeiro disco no qual trabalhei contigo. Quer dizer, tem um triângulo amoroso em cima dessa música. Tudo certo, né? Depois eu gostaria que você fizesse uma canção solo de voz e violão que vou deixar a sua escolha. Gostaria que fosse uma composição sua.

Bom saber. Assim eu já sei onde vou escolher.

Porque eu vou querer que você cante comigo e a banda uma que não é sua, que você gravou no Fina Estampa, que é o Pecado, o meu xodó, a minha favorita. Ontem eu estava comentando como a geração jovem é agradecida a você por revelar uma riqueza que os nossos pais conheceram e não transmitiram para a gente e você está transmitindo. Essa música é o exemplo disso. Quero propor ao Sakamoto, já te propus, de fazer Insensatez com a banda e contigo, ele tocando piano e você cantando e todos nós tocando. A ordem das músicas a gente decide depois. Mas no final voltam Sakamoto, Everton e Paula e tocamos uma música sua que eu já escolhi e fica de surpresa. Quem for, verá.

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