Caetano Veloso: Fazendo sambas com sonoridade roqueira, o artista não tem medo de se expor
Entrevista para a Revista Rolling Stone (20 de maio de 2009)
por Paulo Terron.
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Foto: Fernando Young.
A experiência está completa. Em Zii e Zie, seu trabalho mais recente, Caetano Veloso optou por um caminho não muito comum: fez uma série de shows no Rio de Janeiro, entre maio e agosto do ano passado, e aos poucos mostrou ao público as composições que seriam gravadas para o novo álbum. Quando o repertório ficou pronto, o baiano entrou em estúdio. Por telefone, Caetano falou sobre essa nova experiência, o medo que parece inspirar nas pessoas e também sobre um tema recorrente em seus discos mais recentes - o sexo.
Como você avalia o processo que gerou Zii e Zie?
Rapaz, numa certa medida é mais do que eu esperava, entendeu? Mas também é diferente do que eu podia esperar.
O que você esperava e acabou não acontecendo? O que o surpreendeu?
Não teve nada que eu esperasse e que não aconteceu. Mas é porque eu não tinha expectativas muito precisas. Eu só queria ir fazendo os shows, ficando no Rio e ir desenvolvendo o repertório e os arranjos do disco à vista do público. Gostei muito, mas era fogo fazer um show por semana, com um ensaio só para cada vez. Então eram shows precários, mas tinham um diálogo bom com o público.
Você pretende repetir esse experimento ou foi só para esse disco?
Olha, foi uma ideia que eu tive pra esse momento. Eu queria passar esse ano de 2008 no Rio, e queria fazer os shows semanais. E terminei fazendo isso.
Isso contribuiu para a mutação do conceito do disco? Antes dos shows, você falava em fazer um disco de samba. Depois, você sugeriu que seria algo mais roqueiro. No fim, virou um pouco de cada.
É. O próprio Cê [disco de 2006] resultou de uma mutação, de um desejo de fazer um disco de rock sem o meu nome, e depois fazer um disco de samba. Terminei não fazendo nem um nem outro. Saiu o Cê e em seguida saiu esse, que não é um disco de samba, mas que tem o samba como tema.
Você se vê fazendo um disco 100% de banda? Por exemplo, sentando com sua banda e dividindo todos os afazeres de composição e de arranjo?
Tanto o Cê quanto esse são fortemente discos de banda, mas não no sentido da composição. Há uma parceria minha com o Pedro Sá, neste. No outro não há parceria, no outro todas as canções são minhas. Aliás, é o único disco meu - de toda a minha carreira em que as canções são todas minhas - sozinho. Este tem duas canções que não são minhas, mais uma parceria com o Pedro Sá. Mas o Transa era bem de banda, toda a série da Outra Banda da Terra era bem de banda... Mas as composições são basicamente minhas. Mas você há de convir que há bandas - são bandas onde predomina um compositor. Então isso não descaracteriza esses dois discos, nem os outros a que eu me referi, como discos de banda.
Você acha que tem uma pressão, pelo seu nome ser maior do que os dos outros envolvidos, para que o produto final saia com seu nome? Existe isso?
É uma pressão natural. Todos nós concordamos que é real, que existe, não tentamos fingir. Quando eu quis fingir e fazer um disco de banda, eu queria fazer sem o meu nome, mas aí eu queria até me esconder, ficar o menos reconhecível possível.
A ideia era lançar sem que as pessoas soubessem do seu envolvimento?
É, é...
Isso seria uma experiência interessante!
Isso foi uma coisa que eu pensei e propus a Pedro Sá. Ele riu muito e gostou. A gente ficou pensando em que caminhos trilhar, porque era uma coisa mais nitidamente de rock. Ficamos pensando muito em bandas de rock, ouvimos muitas coisas, relembramos outras, pensamos na situação do rock no mundo, na situação do rock no Brasil e pensamos em fazer uma intervenção curiosa.
Não é um conflito analisar o rock? O rock não tem essa característica de ser mais espontâneo e menos pensado?
Tem sim. O que não o impediu de ter produzido uma cultura bastante requintada e um tipo de erudição muito específico relativo ao rock. Nos ambientes críticos e criativos de rock há toda uma erudição a respeito. Você pode ler essas revistas inglesas, as próprias publicações brasileiras, a crítica americana, francesa - aquela revista de rock francesa que tem um trocadilho no nome, infame. Você conversa com as pessoas que fazem rock na Bahia, em Porto Alegre, no Rio de Janeiro ou em São Paulo ou Nova York e essas pessoas são muito eruditas no assunto rock. Não só elas têm um conhecido assim, vasto, de muitas gravações, espetáculos, nomes, datas, como elas têm muita cultura também da discussão do gosto, das tendências, entendeu? O rock se tornou uma dessas expressões que terminam se aristocratizando. Então não é muito... O que eu estou dizendo é que a gente fazia uma espécie de análise, mas não era intelectual e fria. Era do mesmo modo que as pessoas do rock de fato fazem. Quando eu converso com o David Byrne, ou com o Beck, ou com o Arto Lindsay, ou com o Lobão, ou com o Herbert Viana, ou com o Arnaldo Antunes... todo mundo faz isso espontaneamente. Na conversa com o Glauber Guimarães da Bahia... essas pessoas todas do rock, não só sabem muitas coisas, como têm muitas ideias e discutem muito as ideias a respeito. Isso tudo, pra dizer que não é muito diferente do que eu estava fazendo espontaneamente com o Pedro Sá pra fazer o disco que acabou virando o Cê, que não é aquilo, nem isso, que não é um disco meu, nem um disco de outro, entendeu? Não há diferença entre as nossas conversas e essa de roqueiros. Por outro lado, mesmo que houvesse seria natural, porque eu posso ter tido e tenho um interesse quase que até predominante pelo rock, desde que ele passou a me interessar desde 1966. Na formação do Tropicalismo, no pós-Tropicalismo e até hoje. Mas eu não sou uma pessoa oriunda do rock, eu não sou um roqueiro espontâneo desde a minha adolescência. Eu me aproximei do rock por caminhos pensados, como conclusão de questões do gosto, da opinião crítica e da sensibilidade que se desenvolveram em mim me levando até o rock, mais ou menos, entre 1965/66 e que ajudou no Tropicalismo em 1967. Então, minha aproximação do rock ia ser sempre enviesada, pensada, indireta de alguma maneira.
No disco novo há a música "Guantánamo". Nos anos 1990 você costumava tratar mais de assuntos temporais. No Cê não tinha muito disso. Por que você optou por colocar essa música no disco mesmo sabendo que é um protesto contra algo que aparentemente já está se resolvendo?
Porque foi um protesto que apareceu na altura em que ainda não estava resolvido, mas já tinha o esboço de se resolver. Esboço, aliás, que causou indignação do Fidel Castro. Nos Estados Unidos eu já tinha ouvido de amigos liberais americanos, gente da música e gente do pensamento, todo mundo indignado e horrorizado com a situação da prisão de Guantánamo. Então, a tendência nos Estados Unidos, onde há livre discussão, era disso ser superado, porque não fica bem para o projeto americano manter uma coisa dessas, não é coerente. A letra da minha própria canção já diz isso... que o fato de os americanos estarem desrespeitando os direitos humanos em solo cubano é um nó muito estranho, entende? Já estava chegando no inaceitável. A canção já viveu o desfecho desde antes, viveu parte do desfecho na discussão com o Fidel e terminou saindo quando o Obama estava já eleito e desmontando a prisão. Eu fiz uma piada num dos shows do Obra em Progresso, dizendo que eu tinha feito a canção e que agradecia a Suprema Corte americana de ter me ouvido rapidamente [risos]. Eu acho que canções são canções, elas não são notícias de jornal. Você não pode colocar na sua revista: "Prisão de Guantánamo desrespeita" como uma notícia, entende? Porque isso é uma notícia velha, mas uma canção é uma canção. Aquilo se registra ali uma expressão da indignação que causou no momento em que aquilo existia. E a própria canção, como eu acabei de contar, viveu o drama da desconstrução dessa situação.
As referências sexuais estiveram presentes nas suas letras, mas nos últimos discos isso ficou mais explícito. Qual a motivação?
O que restou de explícito e focado nesse assunto foi impulso da presença do tema no Cê. Quando a gente faz uma série de canções com uma determinada tendência temática, ela permanece, mesmo quando você já não a tem como alvo. Agora, por que no Cê era tão presente e tão explícito? Porque ele tinha letras extremamente pessoais. Tudo está muito perto da minha vida individual, do meu corpo, entende? E isso tem a ver com o rock, mas tem a ver também com uma necessidade individual daquele período da minha vida.
Não é perigoso para um artista colocar algo tão pessoal no trabalho dele, especialmente nos tempos em que há um interesse muito mais aguçado pela vida pessoal dos artistas?
É muito chato esse interesse pela vida privada das pessoas públicas. É um negócio chato, é uma distorção, é desagradável, mas eu não sei se canções como as do Cê são perigosas nesse sentido. Elas até, muitas vezes, se contrapõem ao clima desse tipo de jornalismo e de interesse público também, porque em geral apresentam algo muito verdadeiro e num tom que não é do ambiente dessas questões. Embora eu tenha tido problemas com a imprensa que chegaram a atingir histórias na periferia das canções do Cê, mas não por causa da canção em si, não por causa da temática. Não há nada que tenha se tornado fofoca de imprensa de celebridade porque eu uso expressões como "mucosa roxa", "peito cor de rola", ou, sei lá, aquelas expressões muito cruas do Cê. Elas são desse ambiente, porque esse ambiente não tem esse grau de franqueza. Ele se produz com uma falsidade para um público que gosta de fingir que não sabe que está sendo enganado. Então, isso não tem nada a ver com o tom de franqueza crua das letras do Cê. Agora, quanto a perigo, em geral, perigo se corre quando se faz qualquer música [risos].
Teve também toda a polêmica da Luana Piovani. Esse tipo de coisa deve ser um problema. Porque, quando você está fazendo uma música, você não necessariamente pensa que ela pode se desenrolar para um lado não-intencional desse jeito, não é?
É, mas você sabe que todas estas questões que apareceram não tinham relação com a canção. Não nasceram por causa de a letra ser assim ou assado. Foram coisas fora da canção.
Então é como se o sensacionalismo usasse uma desculpa para tornar aquela notícia digna?
O que eu quero dizer é o seguinte: se fosse uma canção romântica, comum, a história não seria menos desagradável do que foi. Não é por as canções do Cê terem uma letra onde o sexo aparece como um tema olhado de frente. Não é por isso.
Você tem duas músicas com "tarado" no título nos últimos dez anos, né?
É.
É uma coisa muito peculiar. Como você explica isso?
Essa canção "Tarado ni Você", deste disco, quando a fiz, pensei imediatamente em usar a expressão por causa da canção "Tarado", do Jorge Mautner comigo, no disco que nós fizemos juntos. Eu adoro aquela canção e adoro a palavra na canção. Então eu quis fazer uma canção totalmente diferente. Na verdade, foi a primeira canção que eu fiz especificamente para o Zii e Zie. Eu estava na Bahia e queria fazer um negócio com uma forma de samba, um negócio com o samba que fosse estranho, diferente, que mexesse com o samba como eu estava desejando mexer, já prevendo o tratamento que a gente podia dar com Banda Cê. Então eu fiz a música sem letra e, cantando, ia fazendo "taran, taran, ta". Daí vi que praticamente estava dizendo a palavra "tarado". Daí me lembrei da música do Mautner comigo e pensei, 'bom, posso botar a palavra, que é espetacular'. E daí o resto da frase musical cabia 'tarado ni você'. Eu acho bacana esse negócio de "ni". Em iorubá "ni" é a mesma preposição que "em". Então achei bacana. Eu gosto desse negócio de ni. Então eu quis fazer. Eu gosto muito dessa canção "Tarado ni você". Li uma crítica dizendo "como a canção não parece séria"... então muitos críticos se sentem a vontade pra descartar qualquer possível qualidade intrínseca da canção, mas na verdade eu acho essa canção espetacular.
Achei curiosa essa sua explicação porque a música dá uma ideia de que você, no momento, é uma pessoa muito cheia de sexo, sexualizada. Ao mesmo tempo, na música "Ingenuidade", que nem foi você quem escreveu, também há essa ideia de relacionamento com pessoas mais novas. Você gosta de brincar com isso, de mostrar o caminho errado pras pessoas, dar ideias erradas a seu respeito?
Não, não tenho nenhuma intenção de dar ideias erradas a meu respeito, isso é coisa de Bob Dylan. Eu não gosto, gosto de transparência, eu sou totalmente... Você viu como eu gosto de me explicar. É muito chato mas, como disse o Lobão, "chega de verdade"... Então, esse desejo eu não tenho, mas o sexo pra mim é uma coisa central. Eu considero o sexo um absoluto, uma realidade central para todo mundo. É uma realidade central na experiência humana. Então, eu nunca poderia achar que eu estou superestimando ou supervalorizando, ou dando demasiada atenção a um tema que eu considero central. Por isso que através dos anos, das décadas, as minhas canções apresentam, de uma ou outra maneira, essa verdade [risos]... Isso não quer dizer que eu seja uma cara hipersexuado. Entendeu? Não estou dizendo que sou hipersexuado fisicamente nem que... Eu não estou dizendo isso. Aliás, acho que se nota que não é isso que eu estou dizendo, mas pode haver algum equívoco nesse sentido, então estou esclarecendo. Não é isso, embora pareça algumas vezes, pra alguém.
Juntando as temáticas das músicas, as fofocas sobre possíveis relacionamentos seus e a sua separação da Paula Lavigne, acabou se criando uma imagem de um momento extremamente sexual. Você percebe isso?
Percebo mais ou menos e com você dizendo eu fiquei vendo que você não está falando de um vazio. Você está falando de uma coisa que existe, mas, em larga medida, é uma ilusão. Porque também há uma ansiedade... quer dizer, vamos lá: eu era casado, fazia 18, 19 anos, me separei, então qualquer lugar onde eu apareça com alguma moça, esse tipo de imprensa já vai dizer que eu estou namorando, ou que tem alguma coisa, ou que pode ter rolado alguma coisa, ou que rolou, o que não quer dizer que seja verdade sempre [risos]. Esse tipo de imprensa, você sabe, não informa, não informa de verdade. Porque esse tipo de imprensa é feita para sugerir coisas que excitarão a curiosidade preguiçosa de pessoas que têm interesse em pensar assim, como uma diversão meio inconsequente, enquanto está esperando o cabeleireiro, ou na hora que vai para o dentista. Pensar se a atriz da novela das oito está namorando o cantor da banda tal, ou se não sei quem foi encontrado com não sei quem, na festa de não sei quem. Então, aquilo é feito para alimentar uma fantasia... Não informa sobre a realidade, não tem nada a ver com os fatos reais. Basta ter um motivo pra causar suspeita curiosa em pessoas desavisadas, eles põem.
É curioso quando esse tipo de jornalismo chega até você, porque você está sempre aberto a falar do que está acontecendo.
Eu nunca fui de esconder nada, não gosto de esconder coisas, mas também não gosto de ser acompanhado na minha vida cotidiana por uma exposição pública, eu acho isso uma falta de educação, maneira errada de se conviver socialmente.
A Paula também fala bastante de você. Ela também não tem pudores em falar do relacionamento de vocês, mesmo porque vocês continuam trabalhando juntos e continuam próximos. Quando você vai escrever letras pessoais, falando de assuntos muito íntimos, você tem a preocupação em saber se isso vai atingir a Paula? Vocês conversam sobre isso?
As canções do Cê... foi assim: eu estava compondo essas canções e... hoje eu e Paulinha temos mais tranquilidade e maturidade para viver a separação do que quando era muito mais perto. Quando era muito recente a separação era muito mais difícil, não havia tranquilidade, nem paz afetiva e emocional pra se conversar sobre essas coisas. E eu tinha feito aquelas canções que eram urgentes para mim. Eu precisava fazer e ia gravá-las. E não estava em contato com ela, nem muito frequente, nem muito pacífico, nem muito tranqüilo. Mas tinha contato com ela porque não só a gente continuou trabalhando como temos os filhos, tínhamos que nos ver e nos falar. Teve um evento em Paris e, em seguida, um em Londres. E ela foi com os meninos, com o Zeca e o Tom. O Tom era bem menorzinho. Zeca também bem menor, naquela altura ele era um adolescente ainda pequeno. Mas o Tom adorava as canções novas e aprendeu todas, sabia cantar. A Paulinha foi com eles e nós nos encontramos lá. Era um negócio na Cinemateca Francesa, uma retrospectiva do Almodóvar. Eles me pediram pra fazer um show só de violão referente aos filmes de Pedro. E eu fiz, e foi muito bonito e tal. Daí em Londres ela levou os meninos e ficou no hotel com os meninos. Eu fiquei no mesmo hotel em outro quarto, e a gente se via, eu mostrava aos meninos as coisas na rua e tal. E aí uma noite ela perguntou sobre as canções do disco e o Tom na verdade ficou falando. Terminou com o Tom cantando pra ela cada uma das canções que eram pra ela - e o Tom sabia e queria contar a ela. Ele foi mostrando na minha presença, cantando e pedindo pra eu tocar pra acompanhar, e eu encorajando ele a cantar e foi uma maneira bonita... Aconteceu espontâneo do Tom querer cantar, ele era bem pequeno. Ela ouviu as canções assim. Ela não gosta muito de reagir emocionalmente a canções, e nem de ligar canções a fatos da vida real. Nunca gostou, desde sempre. Mesmo as outras canções que não são minhas, entende? Porque é muito frequente: não tenho um amigo que não ligue canções a estados emocionais próprios, ou a situações afetivas. Paulinha não faz isso, é curioso. Quando uma canção é assim explicitamente feita pra ela, como "Branquinha", ou "Não Me Arrependo", ela desbaratina, não demonstra emoção alguma e faz brincadeira dizendo "ah, mas 'Branquinha', essa musiquinha... canção bonita você fez foi pra Sônia Braga e pra Dedé, e pra Vera Gata, pra Regina Cazé, mas pra mim você faz uma musiquinha". Acho "Branquinha" deslumbrante Ce assim também. Mesmo o "Não Me Arrependo" - que é uma música que eu fico emocionado quando canto. Fiquei com uma vontade louca de chorar quando o Tom estava cantando pra ela, mas ela não demonstrou. Falou que era bonita, gostou, mas criticamente ela disse: "ai, Tom, você gosta dessas músicas malucas do seu pai?" [risos]. E não teve nada.
Também há algo de autopiedade nas músicas. Como em "Falso Leblon": "Me sinto muito sozinho".
Esses são momentos que aparecem nessas canções, é verdade.
Parece uma montanha-russa de sentimentos: tem a virilidade do sexo e em outros momentos você se sente sozinho.
Vou dizer: você é jovem, mas deve conhecer consideravelmente da vida pra ver que isso é assim mesmo [risos]. E nesses momentos é assim mesmo.
A solidão tem ar de fraqueza, algo que talvez não seja esperado de alguém famoso como você, não é?
A tradição da canção brasileira é de lamentação permanente. Isso só mudou nos anos 70. O Vinícius de Morais deu uma indicação de que se podia fazer canções de amores afirmados e de conseguimentos, e não apenas de lamentações, embora tenha sido um grande mestre de canções de lamento também. Mas o hábito de se escrever canções de amores afirmados, de vitórias, só começou a crescer a partir dos anos 70. Antes disso, a canção brasileira era de lamento, como voltou a ser com Los Hermanos - que, de uma maneira muito tocante, bonita, parece uma referência remotamente irônica a esse "lamentismo". Os autores nunca tiveram vergonha de, por mais famosos que fossem, lamentaram-se. Não é nada demais o fato de eu ser famoso e ter canções que são lamentos. É tradição.
Você acha que as pessoas têm medo de você?
[Fica em silêncio] Isso é uma coisa que eu nunca imaginaria e não gostaria de saber. Mas é um tópico a respeito do qual, nos últimos anos, tive de - através das observações de outros - considerar. Talvez algumas pessoas em algumas situações, sim.
No relacionamento que você tem com o Lobão ou o Tom Zé parece haver uma mistura de medo e respeito. Concorda?
É. Sou um artista que nunca teve um segundo de paz. Nunca fui unânime entre a crítica, os colegas, a opinião pública. Nunca. Desde quando comecei a cantar sempre houve quem falasse mal de mim - e muito. Aliás, eu sou um artista, a respeito de quem as pessoas se especializaram em se opor. Tem sujeito que fez disso quase que uma profissão. Quando o Fagner começou a falar mal de mim nos anos 70, ele cresceu como figura pública. O próprio Lobão fez muita onda a seu próprio respeito por causa disso. O Tom Zé também. Ele escreveu um negócio no blog dele e houve muita falação. Eu respondi no meu blog e não falei mais. Depois soube que ele me mandou tomar no cu. Não sei se eu estivesse presente ele teria coragem de gritar aquilo [risos]. Se gritasse, ouviria alguma resposta. Acho que eu teria alguma inspiração na hora e uma resposta muito boa me viria.
Mas voltando ao medo: o que você acha que pode gerar esse medo que as pessoas têm de você?
Eu não sei. Fiquei muito calado quando você me perguntou porque não sei se, de fato, as pessoas têm medo. Eu tive que reconhecer que esse assunto deve ser pensado por mim. Porque as pessoas que trabalham comigo não parecem ter medo. Os músicos com quem eu convivi, tocando em diversas bandas, nunca demonstraram medo, nem pareceram ter medo. Eu não inspiro medo nas pessoas que trabalham comigo. Os meus filhos não têm medo de mim, não demonstram ter. Não percebo assim, então não poderia ver. Sou aquele tipo de cara que é o filho afável, irmão afável, que não briga, que é doce. Não imagino alguém tendo medo de mim. Porém, pode haver outros tipos de medo também. Esses casos que você citou, o Lobão e mesmo o Tom Zé, acho que há um componente de medo, sim, e são até pessoas que, de uma maneira ou de outra, dialogam razoavelmente bem com esse medo e o expressam e fazem dele alguma coisa e eles representam talvez a ponta de um iceberg de um tipo de medo de mim que pode haver em diversas outras pessoas que não agem fazendo e terminam fazendo coisa pior que isso.
Você tem medo de alguém?
Tenho medo de muita gente, mas de ninguém em especial. Muitas vezes fico com um pouco de medo de pessoas que estão perto. Mas não é muito, é algum medo. Porque você não sabe se pode desencadear reações de desespero e de... [hesita] Não sei. Mas isso sou eu sentindo medo.
Você acha que você foi ousado o suficiente durante a sua carreira ou você gostaria de ter sido mais ousado?
Eu gostaria de ter sido menos tímido na decisão estética de tudo o que faço. Tive ideias mais radicais do que me senti autorizado a realizar. Porque eu tenho uma avaliação muito... Como posso dizer? Muito insatisfatória da minha capacidade de tratar a matéria musical.
Como se fosse uma autocensura, ou uma autocrítica muito apurada?
Tenho uma autocrítica boa, exigente, mas não demasiada. Acho que o meu talento musical é muito limitado, então eu me submeto - e me submeti - à aceitação de decisões estéticas musicalmente que, dentro da minha cabeça não seriam admissíveis. E não me sentia com autoridade para insistir em fazer como achava que deveria, como eu tinha sonhado. Porque, em primeiro lugar, eu me sentia fazendo música como uma coisa provisória. Em segundo lugar, eu não me sentia com autoridade diante dos meus colegas músicos.