Caetano Veloso: "O Brasil deve repensar tudo"

 Entrevista para o Jornal O Globo (11 de novembro de 2016)

por Leonardo Lichote.

Clique aqui para acessar a entrevista no site original.

Foto: Rafael Berezinski.

Em conversa por e-mail, Caetano Veloso diz o que parece guiar todo o seu pensamento: "vivemos um período de grandes dificuldades". Mas nega que seja mais cobrado por suas opiniões hoje do que em outros tempos: "Talvez porque não olhe redes sociais". Com show marcado para esta sexta-feira e este sábado, ao lado de Teresa Cristina, no Vivo Rio, ele chama de "histeria absurda" a "demonização da Lei Rouanet", conta que não se surpreendeu com a eleição de Donald Trump (um político "desses que surgem como piada e tornam-se um pesadelo"), chama João Doria de "muito yuppiezinho" e critica a "visão difundida contra os evangélicos".

Em 2008, você comentou que Teresa Cristina representava uma "reserva indígena do samba". Como se aproximou dela?

Comprei o disco de Teresa com os sambas de Paulinho (a estreia da cantora, em 2002) logo que saiu. Quando ouvi achei que ela cantava tudo com correção e respeito mas de forma quase neutra. Ao chegar perto dela na série que apresentei durante a feitura do "Zii e zie" ("Obra em progresso", em 2008), me impressionei com o conhecimento que ela tem do meu trabalho. E logo fui vendo que ela conhecia muita música além da minha e dos sambas que cantava na Lapa. Minha piada sobre a "reserva indígena do samba carioca" não surgiu em relação a ela. Eu me referia à nova onda pós Zicartola que cresceu para dentro dos ambientes próximos ao samba de morro. Houve uma superespecialização e uma supercarioquização do samba. Sabe como é, sou baiano, "o samba nasceu foi na Bahia", como dizia Vinicius, ecoando anos de apoteoses no Cassino da Urca. Cresci sabendo que o samba era Herivelto, Caymmi, Ary, Noel, Aracy, Ataulfo, Jorge Veiga, Assis Valente, Carmen Costa, Elizeth... e também os carnavais de Linda e Dircinha, Dalva, Emilinha e Marlene, enfim, uma música do povo brasileiro. Depois houve um resfriamento. E um reaquecimento com dois gumes: o "pagode" (que tinha sido raiz como atesta o nome artístico de Zeca) tornado fenômeno comercial e o ensimesmamento do samba "autêntico" carioca. No fim, a reserva indígena mundial do rock se mostrou mais restritiva do que a do samba. Gosto de tudo, mas sou cheio de nó pelas costas.

Há uma cobrança da esquerda por seu posicionamento político hoje. Essa cobrança é comparável à que você recebia na ditadura?

Há cobrança dirigida a mim? Não vejo muito isso. Talvez porque não olhe redes sociais. Já me senti mais cobrado em outros períodos de minha vida. Não há nada agora semelhante à vaia a "É proibido proibir", à campanha contra os "bahiunos" do "Pasquim" ou à guerra contra a "patrulha odara". Vivemos um período de grandes dificuldades, e todo mundo percebe isso. Mesmo os que tentam simplificar sabem que estão fingindo.

O Ministério da Cultura por pouco não deixou de existir, a Secretaria Estadual de Cultura do Rio acaba de ser extinta, e a Secretaria Municipal de Cultura também corre o risco de se fundir a outra (ou outras). O que acha que isso representa para a Cultura?

Quando Temer extinguiu o MinC, chiei contra a decisão. Eu e muita gente. Ele, mal entrado no poder, recuou. Escrevi em defesa de um grupo que, dentro do ministério, estudava direitos autorais na era digital. Entendo pouco e mal do assunto. Mas confiava na Diretoria de Direitos Intelectuais. Fui cantar no Ocupa MinC, no Capanema. E, junto com outros membros da Associação Procure Saber, aceitei conversar com o ministro. Que foi gentil e pareceu aceitar nossas sugestões. No fim, Marcos Souza (que comandava a DDI) foi fritado e seu grupo desmantelado.

Como você avalia a atuação do ministério?

Trabalho muito, não tenho tempo de ficar estudando tudo o que faz ou deixa de fazer o MinC. Sei que o governo está centrado em fazer parecer que cuida do problema fiscal e ponto. O ministro não deve poder muito. É capaz até de ele ouvir quem não deve, dada a fragilidade da situação. O comentário dele sobre o elenco do filme "Aquarius" foi infeliz. Sonia Braga respondeu muito bem.

Há uma CPI da Lei Rouanet. Devemos repensar o modelo de incentivo à cultura?

O Brasil deve repensar tudo. Agora, a demonização da Lei Rouanet, alardeada por ignorantes, é histeria absurda. Me contam que dizem que nós artistas mamamos na tetas do governo do PT e por isso reclamamos. Não mamo em nada. As palavras de apresentação da CPI reproduziam um site grosseiro, e a maior parte das queixas de malucos que escrevem para redações e se multiplicam nas redes sociais é feita de ressentimento e desinformação. Que venha CPI, o diabo, a verdade há de prevalecer, mesmo que seja desrespeitada por algum tempo.

Você acompanha o movimento de ocupação das escolas?

Acompanho pouco. A imprensa não deu muito espaço nem explicação. E viajei muito. Agora, minha tendência natural é simpatizar com os adolescentes.

Você esteve perto de Gil ao longo de seu tratamento. Como foi vê-lo enfrentar a demanda física da turnê que vocês fizeram?

Fiquei preocupado logo após a primeira internação. Tomei susto. E ele voltou pra Bahia, para fazermos o show no Farol da Barra, muito abatido. Estávamos às vésperas de sair em viagem de turnê longa. Mas ele mesmo me disse (e um médico me assegurou) que iria melhorar com o tratamento que mal começara. Ele de fato melhorou consistentemente durante a viagem. Na terceira cidade ele já estava firme no canto e no violão. Desde então, ele tem melhorado.

O que representa a vitória de Crivella no Rio e de Doria em São Paulo?

O caso do Rio me parece melhor. Fiz a campanha de Freixo desde o primeiro até o último momento. Mas não me identifico com essa visão difundida contra os evangélicos. Penso mais como Mangabeira (Unger). Já Doria é muito yuppiezinho.

E a eleição do Trump nos EUA? Você acredita que ela faz parte de uma onda conservadora internacional? O filósofo Slavoj Zizek disse que o perigo real seria Hillary.

Sem dúvida a eleição de Trump (que para mim não foi assim tão surpreendente: eu achava que muita gente que ia votar nele não dizia isso) tem semelhança com o Brexit e com o resultado do plebiscito sobre o acordo com as Farc na Colômbia. Os populistas de direita na Europa todos celebraram. A frase de Zizek é compreensível. Não é só uma frase de efeito chocante (coisa de que ele gosta muito). Hillary seria a reafirmação da política convencional americana, e era certo o aumento da tensão com a Rússia. Leia os artigos de Pepe Escobar. E Hillary é guerreira. Trump é uma maluquice, o tipo de político de que não gosto. Desses que surgem como piada e tornam-se um pesadelo. Ecoando Mautner, liguei o nome dele aos de Jânio e Hitler, num artigo maluco que escrevi (antes de Temer virar presidente) para a revista on-line "Fevereiro". Mas é assim que vamos aprendendo a viver estes nossos tempos.

ENCONTRO QUE FLUI NO PALCO

Anos depois de ter conversado com Teresa Cristina sobre a “impressão de neutralidade” que teve ao ouvir o disco que ela fez sobre Paulinho da Viola, Caetano viu “maravilhado” ela cantar Cartola ao lado de Carlinhos Sete Cordas.

—Ela tinha entendido tudo dos meus comentários — diz, referindo-se ao show que originou “Caetano apresenta Teresa”.

Além de Cartola, o roteiro tem músicas de Caetano como “Miragem de carnaval” e “Tigresa”. Teresa celebra o encontro:

— Gravar “Gema” era um sonho, cantava muito em casa, assim como cantava “Como 2 e 2” desde os quatro anos. Caetano faz uma letra dessa, forte, e mantém o olhar delicado, atento à performance. E a interação dele com o Carlinhos deu a tônica do encontro. Flui. A gente tem se divertido, viu?

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