Caetano Veloso: “O Brasil tem medo de brilhar”
Entrevista para a Carta Capital (29 de janeiro de 2018)
por Anderson Gomes.
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Caetano Veloso já foi alvo da ira armada, absolutista, mas não calou. Símbolo de resistência e ruptura em época de tirania, forjou seu nome na poesia entre os mártires da ditadura que se apossou da liberdade de expressão no Brasil. Com sua arte, virou verbo.
Na Quadrinstrevista especial, a primeira em um ano fundamental para o País, o cantor e compositor, verbete obrigatório na música brasileira, desnudou sua alma inquieta e ideologia avessa a rótulos: “Não sei se tenho uma identidade partidária. Ou racial. Ou sexual. Ou de gênero. Devo ser um ser muito anacrônico”.
Crítico do impeachment de Dilma Rousseff, que segundo ele fez sombra à Operação Lava Jato, e simpático à candidatura de Ciro Gomes ao Planalto (“é um quadro que não deve se desperdiçar”), o músico filosofa sobre a condição social histórica nacional.
“O Brasil tem medo de brilhar. Sempre desconfiei que isso é porque teme ter potencial excessivo”, salientou. Caetano, que realiza encontros frequentes para debater a política e o Brasil em seu apartamento no Rio de Janeiro, questiona as motivações do impeachment e o papel de seus atores coadjuvantes nas ruas.
“São jovens. Podem estar de modo ingênuo contribuindo para organizações poderosas que os usam como peões”, alertou. Agora, pelas próximas linhas, caetane-se.
Quadrinsta: O socialista do exílio nos anos 1960/1970 ainda carrega os mesmos sonhos? Quais são?
Caetano Veloso: Nem sei se posso dizer que sou ou era socialista. O socialismo me interessa e tendo a estar mais próximo de quem põe esperanças neles do que daqueles que o rejeitam com demasiada facilidade. Meus sonhos são de grandeza para o Brasil, justiça social e luz interna para cada indivíduo. O abandono de alguns aspectos do liberalismo (mesmo o econômico) pode levar a autocracias totalitárias.
Podem confirmar a profecia de Nietzsche que diz que os operários tornados socialistas seriam, se ganhassem poder, autoritários. Sou artista. Canhestro músico popular, mas com temperamento de artista. As complexidades de tons, harmonias, rimas, ritmos - vejo sempre isso em tudo.
Q: Como brilhar e não morrer de fome neste caos social que vive o País?
CV: O Brasil tem medo de brilhar. Sempre desconfiei que isso é porque teme ter potencial excessivo. Quanto a deixar seus filhos morrerem de fome, isso não tem explicação. Nem perdão.
Q: Recentemente você anunciou apoio a Ciro Gomes nas próximas eleições presidenciais, mas cantou em evento comemorativo aos 20 anos do MTST, movimento liderado por Guilherme Boulos, virtual candidato do PSOL ao Planalto e simpático a Lula. Qual é a sua identidade partidária?
CV: Não sei se tenho uma identidade partidária. Ou racial. Ou sexual. Ou de gênero. Devo ser um ser muito anacrônico. Ciro, que continua a ser meu candidato, elogiou Boulos, nos termos que eu próprio elogiaria. Na eleição passada, votei em Marina. Depois que ela foi destruída pela campanha de meu amigo João Santana, votei em Dilma. Fui e sou contra o impeachment. Aquilo pôs a Lava Jato num lugar de alarme amarelo em minha cabeça.
Gosto de Ciro desde que ele foi prefeito de Fortaleza. Claro que não gostei da famosa resposta dele sobre minha adorada contraparente com quem era casado. A ameaça de receber a bala emissários da força-tarefa também soou nada republicana, como se diz, embora expressasse um dos aspectos dos sentimentos que a Lava Jato pode acender em alguns corações. E mesmo em alguns julgamentos técnicos de juristas.
Acho Ciro um quadro que o Brasil não deve desperdiçar. Nem pensava em sua possível candidatura quando recebi um email de James Martins, um amigo meu, baiano, mulato e inteligente, dizendo que parecia ser a hora de Ciro. Respondi que ficava animado.
Pouco depois vi o vídeo de Mangabeira [Unger], pensador que me interessa por ter uma posição de esquerda sem perder a coragem para a complexidade e para a inovação, nunca sendo superficial. Admirador (e amante do estilo) de Marina, me vi, como sempre, com um candidato escolhido. E ele, em princípio, contrasta com as posições de Marina.
O show com o MTST nasceu da aproximação com Boulos, via Mídia Ninja e Paulinha Lavigne. Gostei muito de Boulos, sobre quem meu amigo Duda, baiano que mora no Rio, já me falava faz tempo. [Marcelo] Freixo é sempre meu candidato a tudo desde que o conheci. Simplesmente ele me transmite confiança. E gosto de esquerdistas que se detêm sobre a questão dos direitos humanos.
Q: Esse show, aliás, aconteceu apenas em dezembro, após uma decisão judicial cancelar o evento inicialmente marcado para outubro, em São Bernardo do Campo, São Paulo, por influência do prefeito Orlando Morando, do PSDB. A atual relação entre política e justiça tem o dom de iludir?
CV: Tem. Mas não a todos nem para sempre.
Q: Chegamos ao ponto de os haitianos mudarem a letra da música e passarem a cantar “O Brasil não é aqui”?
CV: Estamos nos esforçando para atingir esse estágio.
Q: É possível ter alegria, alegria com a política do “sem livros e COM fuzil” fomentada por Jair Bolsonaro?
CV: Nenhuma alegria é possível com políticas que sejam ao mesmo tempo conservadoras e malucas. O que, infelizmente, parece ser uma das modas atuais.
Q: Você move um processo contra o MBL e o Alexandre Frota por ter sido acusado de pedofilia em sua relação com Paula Lavigne. O trecho de um vídeo viral seu onde diz “como você é burro” é suficiente para definir essas figuras?
CV: Aquilo era uma resposta ao então crítico de música da Veja que tinha desancado o disco "Muito" - onde estão "Terra" e "Sampa", entre outras - com a acusação de que minha capacidade de escrever letras tinha desaparecido. Para isso ele citava justamente citações, dentro de letras minhas, de versos de Humberto Teixeira e Ary Barroso, crendo que fossem meus. A frase pode ser usada (e tem sido) em outros contextos. Mas não sei se burrice é o único problema desses manifestantes da reação.
Q: Caetano, em quê Lobão tem razão?
CV: Em dizer, na letra da bela canção que fez sobre mim, a frase "Chega de verdade". Mas Lobão não tem apenas razão. Ele tem também talento, estilo próprio, verve. Compôs e gravou algumas das canções mais interessantes da nossa música nas últimas décadas. Infelizmente a ansiedade dele a respeito do prestígio que merece (e também a angústia da defesa de sua originalidade) podem tê-lo levado a fazer coisas bobas na área da auto-exposição midiática.
Suas tomadas de posição política são coisa pelo que ele tem de responder e que trato com respeito. Muito têm a ver com o sentido histórico do rock, do amor ao rock. Não é uma mera maluquice.
Q: Como podemos reverter a nova ordem mundial?
CV: Isso não sei. Mas há uma ordem mundial? Quando escrevi "Fora da Ordem", havia a Nova Ordem Mundial de Bush pai.
Q: Quem pode derrotar essa força estranha da grana que destrói coisas belas no período de exceção que o Brasil atravessa?
CV: A força da grana tem mostrado capacidade de erguer coisas belas. E mesmo de diminuir a fome geral. Mas a lógica de crescimento da acumulação de riqueza e de desigualdade social em todos os lugares do mundo (o Brasil entre os campeões) precisa encontrar resistência consistente.
Desculpe estar respondendo em tom que parece desprovido de humor. Estou na Bahia e o prédio onde estavam as caixas de grana de Geddel fica muito perto daqui de casa. Quase que só dá mesmo pra pensar na capacidade destruidora da força da grana.
Q: O fundamentalismo e o comércio da fé de parte da América evangélica superaram a incompetência da América católica?
CV: Uma das coisas que o evangelismo pode trazer aos latino-americanos é tornar-se uma das ferramentas para a tentativa dessa superação. Pior do que a onda evangélica é a onda de preconceito contra as conversões autênticas e sinceras que se dão pelo continente adentro, o Brasil com grande proeminência. Vocês deviam ouvir o pastor Henrique Vieira.
Q: Aqueles jovens que caminhavam contra o vento, sem lenço e sem documento, nos tempos da ditadura alimentavam-se de um desejo incontrolável por democracia. O que você acha que move essa juventude atual que veste verde e amarelo e empunha panelas nas mãos?
CV: São jovens. Não são tão diferentes. Podem estar de modo ingênuo contribuindo para organizações poderosas que os usam como peões. Quando vi aquela gente nas ruas de São Paulo no dia em que o grampo da conversa de Dilma com Lula saiu no Jornal Nacional, pensei: o golpe está dado. Mas as motivações que movem as muitas pessoas em tantas direções são complicadas e merecem atenção cuidadosa.
Q: Com um governo certo como dois e dois são cinco e todos esses escândalos de corrupção, que saída você vislumbra para a política no Brasil?
CV: Que colhamos com orgulho a jabuticaba madura e suculenta que pudermos produzir. Comecemos por deixar de chamar de "jabuticaba" tudo o que há de errado nas sociedades humanas e que acontece aqui. E vira-lata é a expressão que Ann Douglas usa (mongrel) para orgulhar-se dos Estados Unidos. Temos de ser fortes, corajosos e diferentes.