Caetano Veloso, um amor de pai
Entrevista para o Clarín (16 de fevereiro de 2017)
por Eliana Galarza.
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Fotos: Maxi Failla, do Clarín.
O Rio de Janeiro amanheceu nublado. As praias e os arredores de Copacabana e Ipanema se veem como através de uma lente cinzenta. Mas a paisagem começa a ganhar cores à medida que vamos chegando ao Leblon, com suas ruas senhoriais e suas árvores de um verde intenso que parece pintado à mão.
Na rua Almirante Pereira Guimarães, as calçadas parecem mais compridas. As distâncias são maiores entre as portas com grades de um prédio e outro. As caras dos seguranças são menos amigáveis do que em outras vizinhanças.
No décimo andar de uma dessas torres aristocráticas mora um dos brasileiros mais queridos na Argentina. O homem que, sorrindo, é capaz de fazer as nuvens desaparecerem e que, ao cumprimentar, transmite no abraço o que esperamos do Brasil, o calor da boa vibe. “Como foi a viagem?”, pergunta Caetano Veloso. E então dá vontade de conversar e de escutar. De observar e de sentir.
Com 74 anos, Caetano – que em março fará shows na Argentina – perdeu alguns quilos e um pouquinho de cabelo, mas não perdeu o magnetismo. Como sempre, administra sedutoramente as pausas e os olhares e dosa naturalmente seus sorrisos contagiosos. Com 20 anos, seu filho mais novo, Tom, é um fiel descendente da dinastia Veloso.
A Revista dominical Viva os reuniu em uma entrevista exclusiva para apresentar o novo integrante de uma linhagem de músicos, que está pisando firme nos cenários com Dônica, uma banda teen que aposta no rock progressivo.
A casa de Caetano é branca com toques coloridos. Um duplex sem pretensões, mas com personalidade. Equilibrado, com muitas lembranças, prêmios, fotos, livros, e decorado com objetos de arte contemporânea. Espaçoso, com terraço, luminoso. Hoje se abre – pela primeira vez – para a mídia.
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Caetano: “Antes eu morava muito perto daqui, em um apartamento, também no Leblon, mas na praia. Mudei porque aqui eu me sinto mais à vontade, tranquilo, com ares renovados...”
Tom mora perto daqui, em Ipanema, na casa da mãe, a produtora musical e cinematográfica Paula Lavigne, a cujos braços Caetano voltou há um ano, após uma separação turbulenta em 2004, 19 anos de casamento e dois filhos.
Caetano: “Sempre gostei muito da Paulinha, no verão do ano passado eu a vi e confirmei que continuo gostando dela, por isso voltamos, mas cada um na sua casa. Ela organizou meu último aniversário e foi muito bom, com meus filhos, meus netos (Rosa e José, filhos do seu filho mais velho, Moreno) e meus amigos. Percebi que Paula faz eu me sentir bem.”
Moreno já tem 44 e Tom acabou de fazer 20, no dia 25 de janeiro. Você evoluiu como pai?
Caetano: “Meus três filhos são a glória. É verdade, Moreno já tem 44, é um adulto, um músico excepcional, um pai de família. Zeca também é músico, tem 24 e já saiu da adolescência, pelo menos oficialmente. Tom, poderíamos dizer que começa a se despedir dessa etapa. Em termos de convivência, Tom cresceu com a mãe, acho que eu o vi menos que Zeca e Moreno. Mas eu sou um pai que gosta de dividir as paixões dos filhos. Eu sempre o levei para jogar futebol, por exemplo, que é a loucura dele. Tom tem seus próprios interesses. Ele gosta de ficar com os amigos, com a namorada Jasmine e não gosta de estar grudado nos pais. Eu diria que ele é um cara bem normal. Moreno e Zeca, em compensação, sempre estavam grudados em mim. Eles me perguntavam os nomes das músicas que escutavam e até queriam saber quem eram os autores.”
Os três são músicos, você influiu nessas vocações?
Caetano: “A relação que cada um deles teve com a música foi bem diferente. Moreno e Zeca eram muito dóceis para aprender, tinham muita curiosidade e neles a “formação musical” aconteceu naturalmente. No caso de Moreno, ele também gostava muito de ciência e acabou estudando Física. Zeca é apaixonado pelas bases rítmicas e pelas programações. Ele trabalhou comigo no último disco de Gal. Mas Tom não gostava nem que eu cantasse canções de ninar. Ele não tinha paciência para a música. A paixão dele quando era pequeno era só o futebol.”
Tom, quando você começou a se interessar pelo que o seu pai fazia?
Tom: “Não sei se teve um momento exato. Eu me lembro de uma turnê pela Europa que eu fui também. Talvez tenha sido esse o momento em que eu comecei a gostar das músicas que ele cantava. Antes elas não me atraíam.”
Caetano: “Nessa turnê pela Europa, Tom assistiu ao show todos os dias. Ele tinha sete anos e começou a escolher as músicas de que mais gostava. Eu estava no palco sozinho, com meu violão, e ele começou a pegar gosto pelo que escutava e pelo que via.”
Como diz o pai, a paixão de Tom estava colocada em outros campos, especialmente em campos de futebol. Nesse terreno em que o Brasil e a Argentina são eternos rivais.
Caetano: “Olha o que eu vou te contar. Quando ele era pequeno, cada vez que a Argentina e o Brasil jogavam, Tom torcia por vocês. E continua torcendo.” Para acreditar nisso é só olhar a camiseta que Tom está usando: é uma camisa da seleção argentina, azul, a versão alternativa oficial.
Tom: “Essa é uma das primeiras lembranças que eu tenho da Argentina. Meu pai nunca me levou ao seu país nas turnês, mas eu jogava futebol em campeonatos infantis e era louco pelos jogadores da Argentina. Adorava o Riquelme. E, depois, quando o Higuaín e o Messi apareceram... Eu adoro o Messi e gosto do Maradona. Sonho conhecer a Argentina, pisar na Bombonera e jogar alguma pelada com jogadores argentinos.”
Caetano: “Eu te disse, esse garoto é argentino.” Essa paixão pela Argentina, porém, não se traduziu em influência musical. Tom gosta de Astor Piazzolla e para por aí.
Caetano: “Tom começou na música com um amigo meu, Cézar Mendes, Cezinha. Um violonista e compositor lá da minha terra, de Santo Amaro, na Bahia.”
Tom: “Eu não tive uma educação formal em música. Cezinha sempre me dizia: ‘Vamos, eu te ensino uns acordes e depois você continua’. Mas ele não conseguia me convencer. Até que um dia ele praticamente me obrigou e me ensinou dois acordes para tocar no violão...”
Caetano: “Que acordes ele te ensinou?”
Tom: “Mi menor, La7.”
Caetano: “É mesmo? Que engraçado! Bem básico.”
Tom: “É, pai, uma coisa fácil, eu estava aprendendo... Foi assim que tudo começou, como uma viagem muito boa. Eu gostava das músicas que meu professor me ensinava, por exemplo Terra e Desde que o samba é samba.”
O pequeno Tom cresceu musicalmente ao abrigo da paciência de Cezinha e, aos 14 anos, com alguns amigos da sua idade, começou formar o seu próprio projeto.
Tom: “Primeiro eu fiquei amigo do Zé Ibarra, um colega do colégio. Um dia, eu tinha nove anos, nós nos encontramos no desfile da Sapucaí, no carnaval daqui do Rio.”
Caetano: “Que bom começo de uma banda, lá na Sapucaí...”
Tom: “Eu estava tirando fotos. Eu e o Zé ficamos amigos, ele era novo, como eu, e tocava piano, bateria e cantava. Hoje ele é multi-instrumentista e também compositor. Dois ou três anos depois, nós conhecemos o Lucas Nunes e o Deco Almeida e começamos a tocar juntos. Eu continuava aprendendo com o Cezinha e comecei a fazer músicas com ele, piano e letra. Depois Zé teve a ideia do nome Dônica para a nossa banda. É uma palavra que não tem nenhum significado especial, mas que nos representa.”
Caetano, você os viu crescer. Você deu conselhos para a Dônica?
Caetano: “Sim, e ainda estou vendo eles crescerem. Lembro que um dia eles apareceram no meu apartamento, no outro, que era na praia. Primeiro eu vi o Zé, pequeno, e não dava para acreditar. Ele tocava piano, teclados e tudo muito bem, tinha muito jeito. Para mim esses garotos são superdotados musicais. Eles me impressionaram desde muito novinhos. Eu nunca influí neles, eu só dizia que eu gostava muito do que eles faziam e deixava eles tocarem. Como pai de Tom eu me sinto muito orgulhoso. Sinto que ele desenvolveu todo o potencial dele. Ele tem talento, toca bem violão, tem uma percepção clara, nítida. Eu não tenho a percepção que ele tem.”
Ele toca violão melhor do que você?
Caetano: “Sim, ele toca melhor.” Tom: “Pai, eu não toco melhor, eu toco diferente.” Algo que poderia ser de um ponto em comum entre esses dois Veloso, é outro ponto de diferença. Tom tem smartphone, lê as notícias na internet e, sem ser fanático, é um usuário ativo das redes sociais.
Caetano, em compensação...
Caetano, você ainda não tem celular?
Caetano: “Eu continuo no mesmo caminho. E agora até diria que preciso menos. Meus filhos são grandes e eu não preciso mais ir buscá-los em lugar nenhum. Eu passei alguns momentos de angústia, de ficar na porta de uma casa, esperando em vão que meu filho saísse. Será que eu estou no lugar certo? Será que era hoje que eu tinha que vir buscar ele aqui? E eu não tinha um celular para poder confirmar. Naquela época eu quase comprei um. Felizmente sempre tinha alguém com celular por perto. Aí eu pedia emprestado. Ninguém nunca me disse que não!”
Você lê meios gráficos ou digitais? Como você se informa?
Caetano: “Eu leio jornal impresso, de papel. Eu não tenho celular, mas tenho computador e gosto de ver os sites de notícias on-line só para ficar sabendo dessas coisas engraçadas, como por exemplo, que Messi tingiu o cabelo de platinado. Essas coisas, geralmente, estão no Yahoo! Notícias e eu leio rápido, só para estar por dentro e me divertir. O que eu adoro é ver coisas no YouTube. Outro dia eu achei gravações antigas de Ary Barroso. Dá para acreditar? Está tudo no YouTube!”
Outro ponto em que Caetano e Tom não concordam é a religião. Ateu convicto (“A ideia de religiosidade é insatisfatória para mim”, “Não me dou bem com a hipocrisia das pessoas que têm algum tipo de autoridade religiosa”), Caetano criou Tom com Paula, também ateia, e o resultado foi um rapaz que tem fé. Tom é cristão.
Tom: “Eu não tenho ido muito à igreja ultimamente, mas é uma coisa que aconteceu naturalmente. Eu acredito em Deus.” Caetano, aberto, respeita as ideias do filho e o apoia com a Dônica.
Neste ano, Tom espera gravar um segundo disco com sua banda e ri quando o pai conta à Revista Viva que gostaria de fazer um disco familiar.
Caetano: “Eu sonho em subir num palco e fazer um show com meus filhos, mas por enquanto isso só está em minha cabeça e em meu coração, vai ficar para depois.”
E sobre o mundo de hoje?
Caetano: “É impossível imaginar um momento mais complexo e difícil, como o deste presente, para dar uma opinião ou fazer uma análise. Eu tenho a impressão de que o mundo está atravessando o começo de uma etapa de grandes mudanças, um tempo que pode ser longo e turbulento. Que infelizmente também pode ser enfocado de um modo apocalíptico. Quanto à nossa região, a Argentina, um país que eu adoro, tenho as melhores lembranças de minhas férias em Mendoza, e o Brasil estão transitando uma guinada à direita. Vocês, democraticamente, nós, nem tanto. E nossos assuntos latino-americanos, infelizmente, ainda dependem do que decidam lá, no ‘Primeiro Mundo’. Donald Trump, agora presidente dos Estados Unidos, é uma resposta da maioria trabalhadora branca, que perdeu com a globalização. Uma resposta que também terá efeitos sobre nós.”
Agora o sol está brilhando com força sobre o Leblon. A praia está cheia de turistas.
O Rio de Janeiro parece o dos cartões postais.
Caetano sorri mais uma vez e se despede com outro abraço. Seu filho Tom também. Eles abraçam igual.