Clarice (24/07/2011)
Benjamin Moser, o caçula dos apaixonados por Clarice Lispector, escreveu um livro arrebatador sobre essa nossa poeta e musa. Tomo a liberdade de chamá-la de poeta baseado em Georg Lukács, que usava a palavra para se referir aos grandes ficcionistas dos séculos XIX e XX, já que ele os considerava os legítimos herdeiros da poesia épica. Também porque Clarice foi autor-sintoma da tendência de “liricisação” da prosa narrativa, apontada pelo mesmo Lukács como um mal que assolava a literatura. Clarice estava, quanto a isso, no time de Joyce, Gertrud Stein, Virginia Woolf, Rosa e Beckett. De fato, sua prosa ficcional é pouco prosaica e pouco narrativa. O grande Lukács pode ser usado na concórdia e na discórdia. Os grandes são assim mesmo. Têm que aguentar. Clarice foi uma das maiores paixões da vida do meu espírito — e isso se deu imediatamente antes de eu começar a ouvir falar em Lukács e ler aquele seu livro com uma margarida na capa, lançado pela Livraria Civilização Basileira (o nome dessa editora não deixou de influir na formação do meu mito do Brasil).
Eu tinha 17 anos quando li “A imitação da rosa” na revista “Senhor”. Eu ainda morava em Santo Amaro, e meu irmão Rodrigo me deu de presente uma assinatura da revista. Um mascate editorial nos mostrara, e eu ficara encantado. A esse irmão devo tudo: “Senhor”, “Laços de família”, “A maçã no escuro”, os três primeiros LPs de João Gilberto — além de sessões no clube de cinema. Li as minúcias da vida dos Lispector na Ucrânia com Rodrigo na cabeça.
Clarice nasceu num lugarejo perdido, perto da Moldávia. A história de sua gente — tanto de sua família imediata quanto das que com ela partilhavam condição semelhante e, finalmente, de todo o povo judeu em sua misteriosa história de quase nenhuma realização material e imensa contribuição cultural na formação do mundo tal como o conhecemos — ressurge em cada página lembrada por Moser. Mas também o Brasil. O amor pelo Brasil, com o qual tendemos a nos identificar de modo total, é marca tão funda na personalidade e na literatura de Clarice quanto o atavismo judaico que tem tanta relevância para o seu jovem biógrafo. Com a língua portuguesa como traço de união, temos os termos da equação Clarice: o Brasil e Spinoza. O mistério, seu grande mistério (no qual Capinam deve ter pensado também — e não apenas no da Clarice de sua infância — quando escreveu aquela letra que eu musiquei mal — mas que não deixou de ter encanto assim mesmo — e que entrou no primeiro disco tropicalista como Pilatos no Credo) pode ser parcialmente desvelado ao se reconhecer em sua obra o panteísmo atingido a partir da formação judaica na língua de Camões (Spinoza) e a experiência entre os feios de Elizabeth Bishop e Ed Motta (o Brasil).
De fato, comove ler aquele gênio-beldade dizendo às irmãs que o povo na Suíça é feio, que ela tem saudade demais do Brasil. O conceito de beleza dessa estranha criatura (o Americano que a recebeu para uma palestra no Texas — para a qual Bishop contribuiu com seu habitual tom de desprezo — confessou-se deslumbrado por conhecer alguém que “parece com Marlene Dietrich e escreve como Virginia Woolf”) era muito diferente do da poetisa da Nova Scotia e do gordo de Nova Iguaçu.
Musa, sim. Todos estivemos também fisicamente apaixonados por Clarice em algum momento de nossas vidas. Eu, sempre. Cantei o refrão de Capinam sobre o mistério sempre pensando nela, com saudade dela, com pena de ter me perdido dela.
Há um texto curto de Clarice, escrito para jornal, em que ela relata os primeiros telefonemas que lhe fiz. Honra-me que ela tenha demonstrado surpresa pelo tanto que eu conhecia (e entendia) de seus livros (“Baianos são assim?”, ela se pergunta). Mas assombra-me que ela tenha tido uma reação de starlet mídia-freak: atribui a Dedé, minha namorada na época, um ataque de ciúme que não se deu absolutamente. Ela era bem mulher. Misóginos e amantes das mulheres me entenderão igualmente aqui.
A experiência de ler sobre a vida de Clarice (e relembrar sua obra a cada passo) não poderia deixar de me levar a sentimentos extremos. Lembrei-me vivamente de Duda Machado me dizendo sobre “A maçã no escuro”: “Isso é panteísmo”, querendo dizer que ele não gostara muito. Duda era mil vezes mais culto e inteligente do que eu, e eu o adorava. Mas continuei siderado em Clarice. Moser talvez não saiba o que é partilhar a natural brasilidade da escritora. Minha lembrança desse momento com Duda me diz tudo sobre o que eu não sei explicar ao caçula.
Jorge Mautner me conta que Hitler esbravejou contra a hipocrisia dos ingleses, que, tendo usado ópio para dominar a China e feito atrocidades na Índia e na África, queriam, arrogantemente, criticar o Terceiro Reich. Acho que o pior da nossa imprensa veio da influência dos tabloides ingleses (tanto a lixeira de celebridades quanto a pretensão de rock critics). Agora caiu até o chefe da Scotland Yard (e os envolvidos no assassinato de Jean Charles), tudo perto do primeiro-ministro. Bem, mas foi ótimo que Churchil tivesse liderado a ação dos aliados que esmagaram Hitler. O fato, eu disse a Jorge, é que nunca nenhum povo enriqueceu sem oprimir outros. O Brasil terá de ser o primeiro. Apoiemos a presidente contra corruptos e corruptores e torçamos pelo Brasil salvador, o Brasil que foi amado em profundidade pela poesia de Clarice Lispector.
Caetano Veloso.
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