Coisas importantes (19/06/2011)
A influência recíproca entre Chico Buarque e Guinga é um traço auspicioso da música brasileira contemporânea. É algo que chegou a tempo (tarde na carreira de Chico, cedo na de Guinga), em mágica sincronia. Guinga sempre soou como quem teve sua musicalidade (mais do que qualquer outro aspecto de sua natureza) formada na audição do músico Chico. Chico, que é tanta coisa para tanta gente, só é assim uma espécie de Milton Nascimento para Guinga. Este o ouviu como músico, como os músicos-músicos ouviram o músico Milton. É diferente. É importante. É nos detalhes que mora o tinhoso. Deus. Chico admirou as harmonias de Guinga, muito possivelmente sem se reconhecer nas sequências de acordes. Talvez mais atraído por sua brasilidade carioca genuína, sua obstinada lealdade de gênio ao modo de ser do homem brasileiro comum, seu total fastio pelos adornos do êxito pop. Aí talvez visse algo do que sempre soube de si mesmo. Mas parece que a música em si, a interpretação crítica de sua própria musicalidade que está embutida nas peças de Guinga, isso ele ouviu como coisa nova, alheia. É assim que ouço o que há de Guinga em Chico. Que existe por causa do que há de Chico em Guinga. Guinga sempre sabendo, e Chico, a princípio, inocentemente. É tudo muito bonito.
Quando um jornalista gaiato quis desqualificar o trabalho de Chico sob a alegação de que podia falar mal do seu então novo disco sem ouvi-lo, já que esse forçosamente conteria as velhas fieiras de rimas, quebrou a cara: era o disco em que Chico já soava como quem tinha entendido Guinga, fato que o levara a entrar por caminhos melódicos insuspeitados — e (o que destruía com maior violência a argumentação do involuntariamente cômico repórter) a um uso rarefeito das rimas, a uma etérea zona do mundo das palavras, que agora se distribuem em formações esgarçadas, muito longe das sempre justas e amarradas construções que caracterizaram a produção do Chico da juventude e da primeira maturidade.
Leo Tomassini (que já teve um grupo chamado Família Roitman, que se especializava em sambas antigos: pra que discutir com madame Francis? — para citar outro jornalista engraçado, embora finado) me mandou um link para Guinga cantando “Senhorinha” (dele e de Paulo César Pinheiro) e eu achei que Guinga estava totalmente Nana Caymmi, que a canção era tão incrivelmente Nana Caymmi que ele estava cantando como ela. Daí vi logo ao lado a sugestão do YouTube para ouvir a própria Nana cantando a mesma música. Fui ouvir. Confirmado. Lembrei que já tinha ouvido. E amado. Mas fiquei com a impressão de que Guinga estava mais Nana do que Nana. São umas ramificações intestinas das belezas nossas, que muita gente no mundo pode nunca chegar a conhecer — e me é espantoso que tantos em tantos lugares já conheçam tanto: por causa de João Gilberto um mundo de música e de poesia intraduzível se infiltrou insidiosamente nas cabeças de pessoas espalhadas pela Terra, pessoas que nada sabiam da língua portuguesa, que ainda não conhecem o Império nem as ideias de José Bonifácio, que não viram a sociedade norte-americana desde a perspectiva de Joaquim Nabuco. Um dia alguém de qualquer lugar poderá ver, com a mesma clareza com que alguns de nós aqui vemos, que Nana cantando “Medo de amar” (gravação que, quando foi lançada, Bethânia me telefonou para ir correndo à casa dela ouvir) é tão forte e bonito quanto “Os sertões” de Euclides da Cunha. Mas mesmo que isso não acontecesse — que não aconteça do modo como conheço em potência —, nada pode mais negar a verdade essencial que me apareceu como um sol e agora aos poucos se desvela.
O sol da nossa música é Antonio Carlos Jobim. João foi o momento antes do tempo em que o sol se formou. João não tem tempo. Eu poderia passar todo o mês de junho festejando seus 80 anos. Seria o mesmo que nada. Não se mede. Paquito sabe. Entro pelas vielas do Candeal e chego ao estúdio de Brown, onde estou, com Moreno, gravando Gal. Gastamos muito tempo conversando. Gal contribui com histórias e comentários. Mas só uma confissão a arrebata: “João, João cantando é o maior amor da minha vida.” Salvador encharcada de chuva. Nada para atrapalhar a essência do que João levou daqui. Nenhuma aparência do que um turista inculto reconheceria como Bahia. Estamos a salvo. A casa de Moreno também é no Rio Vermelho. Minha nora e meus netos já estão dormindo. Chego lá e ficamos só meu filho e eu ouvindo coisas que ele escolhe. Nova canção de Chico no disco de Thaís Gulin. Aí começou a conversa que me trouxe para casa com Chico e Guinga na cabeça. Moreno diz que não para de ouvir esse CD. E principalmente essa faixa. Passamos para o novo (inacabado) disco de Moreno: ele tinha interesse em me mostrar como Daniel Jobim toca uma de suas músicas. É muito bonito, tudo. Daniel, tão profundamente Jobim, o +2 reunido outra vez, Maurício Pacheco, tanta gente importante — e a quase onipresença do samba de roda do Recôncavo, mostrando o quão arraigado em meu filho está o gosto de nossa terra de nascença. E ele cantando, com sua voz que só guardou da minha a parte timbrística que, na minha juventude, a fazia semelhante à de Chet Baker. Moreno soa mais Chet Baker do que o Chet Baker que havia em minha cabeça quando, aos 18 anos, eu o ouvi por causa de João Gilberto. Mas não é Chet. É algo puro que ele isolou do som de Chet. Só o espírito do som. O som do espírito é João quem explica.
Caetano Veloso.
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