Concórdia e discórdia (08/07/2012)

“A não concordância de número nos verbos e adjetivos relacionados também me faziam mal.” Essa foi demais. A não concordância de número me “faziam” mal? Não tinha relido aquele artigo em que chamei o acento grave de agudo. Não vi é que um erro maior tinha passado. A frase — que abre o artigo de hoje — é um erro perfeito. Senilidade & masoquismo. Quem me chamou a atenção foi o professor André Valente, a quem devo tanto (ele levou Moreno, na adolescência, a gostar de português como matéria escolar, o que elevou o nível do diálogo com meu filho mais velho para um patamar acima do maravilhoso entendimento emocional-afetivo que ele e eu já tínhamos). Se eu fosse mais organizado, ia escrever aqui sempre sobre fatos da língua. A discórdia com os sociolinguistas terminaria em alguma concórdia (para confirmar o diagnóstico de Roberto Schwarz).

Uma piada deles sobre os que gostam de defender a norma culta saberem menos sobre ela do que eles — que supostamente a desprezam — servirá sempre como uma lição a mais (e mais exigente) a ser divulgada sobre o melhor uso das regras vigentes (Bagno fez isso com Dora Kramer num livro; poderia fazer mais com meu grave agudo e mais ainda com minha discordante demanda por concordância).

Tinha me prometido escrever hoje um texto coeso, elegendo um assunto único e desenvolvendo-o até sua conclusão pertinente. Tudo isso para intitulá-lo “À Francisco”. Adoro os ensaítos de Francisco Bosco (destaco um que trata da opressão chinesa no Tibete, um que punha sob suspeição o texto de Zizek sobe o tema). Por um lado, eu não queria que, nos acenos que por vezes fazemos uns aos outros ocupantes deste espaço no Segundo Caderno — os que fomos saudados pela ironia do Xexéo quando nossos nomes foram anunciados —, eu tivesse deixado parecer que só me interessei pelo único artigo de Francisco que, meio contra o gosto do autor, saiu fragmentário. Por outro, eu teria a oportunidade de pôr no título um acento grave indicando crase diante de um nome masculino. Claro que eu aproveitaria a ocasião para tirar onda com a cara de alguns possíveis leitores que viessem a pensar que aquele “à” era o jeito certo de grafar a preposição, explicando que não, nada disso, que ali era crase mesmo. E que só se usa crase antes de um nome masculino quando ela é forma abreviada de “à maneira de”. Às vezes se escreve “à la Francisco”, em francês, o que aumenta a confusão, já que em francês a preposição tem o acento grave. Em português, “à” significa o que em espanhol é “a la” e, em francês, “à la”. Uma vez, no blog Obra em Progresso (que acompanhava a feitura do disco “Zii e Zie”), escrevi que, para que meus possíveis leitores tivessem alguma luz sobre como pode ser simples, claro e fácil o uso da crase, bastava entenderem “à” como o feminino de “ao”. Vou ao Rio; vou à Bahia. Mas Possenti, o linguista, me deu a honra de postar um comment no nosso blog dizendo (a rigor, com razão) que eu não podia caracterizar como variação de gênero (masculino, feminino, como no título daquele maravilhoso filme de Godard) o que acontece com palavras formadas por uma preposição, já que preposições não conhecem flexão de gênero. Bem, “à” e “ao” são formadas da preposição “a” e do artigo definido, este, respectivamente, em suas formas feminina e masculina. Pareceu-me que, se eu fosse um professor de português, talvez não devesse mesmo dizer a meus alunos que “à” é o feminino de “ao”, mas, como estudante dirigindo-se a colegas que tivessem dificuldade de decidir-se sobre pôr ou não o acento indicativo da crase, eu poderia ser informalmente útil. Meu amigo, sentado na carteira ao lado da minha, teria um novo ângulo de abordagem da questão: só escrever “à” nos casos em que, se se tratasse de um substantivo masculino, ele pudesse ou devesse escrever “ao”. Penso em como minha amiga Heloisa Chaves deve estar me achando chato com esses erros e consertos.

Falando em ensaítos, gostei muito dos artigos de Elio Gaspari e Demétrio Magnoli (tão diferentes entre si) sobre as confusões do Mercosul no Paraguai. Meus amigos racialistas têm urticária só em ouvir pronunciar o nome de Magnoli (mas respeitam o de Gaspari, que defende cotas e o ProUni). Bem, eu gosto do livro de Magnoli sobre a questão racial. Eu também sou brasileiro, moreno como vocês. E os de Gaspari sobre a ditadura, claro. Este tem estilo jornalístico, aquele, sociológico. Mesmo em curtos textos de jornal, Demétrio escreve como sociólogo. Gaspari, mesmo no livro, tem o tom vívido, perto da notícia e da manchete, que caracteriza o repórter. Os dois comentários sobre o caso do Paraguai mostram como artigos de jornal podem servir para amadurecer a vida política brasileira, com pinta de influir, cedo ou tarde, nas decisões que possam vir a ser tomadas pelos que chegam ao poder. Peço desculpas por não resumir aqui o que cada um dos textos dizia. Não intuí um planejamento do espaço que comportasse tais resumos. Nem (mais importante) me sinto capaz de fazê-lo agora com a clareza necessária. O leitor que não os leu no papel pode achá-los na internet. Suponho. Já achei artigos na internet apenas dando um google em termos relacionados ao assunto.

Em suma, se este artigo de hoje viesse com o título de “À Francisco”, isso não significaria que ele era dedicado ao meu jovem colega, mas que tinha sido escrito à sua maneira — coisa que ficou mais longe do que nunca de acontecer.

Caetano Veloso.

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