Curva do Calombo (25/12/2011)

Todo fim de ano é fim de mundo, e todo fim de mundo é tudo o que já está no ar. Ou pelo menos é assim que lembro que começa a canção que fiz sobre Brasília para o disco “Cantar”, que produzi para Gal no final dos anos 1970. O ano de 2012 chega com supostas profecias do calendário maia, com a “Melancolia” de Lars Von Trier, com a deterioração da União Europeia e a impressão de que a hegemonia do Atlântico Norte chega ao fim. Isso é mais ou menos tudo o que já está no ar. Mas da próxima vez que eu for a Brasília, eu trago uma flor do cerrado para você. Não fui procurar o que afinal Flora Thompson DeVeaux achou de Brasília, mas vi que ela equacionou as notícias de cancelamento (tantas vezes desmentidas e reeditadas) do show de João Gilberto com o poema de Pessoa sobre Dom Sebastião (“Sem a loucura o que é o homem/ Mais que a besta sadia/ Cadáver adiado que procria?”).

Brasília costumava ser o refúgio dos que desejavam salvar-se do Apocalipse. Só o Planalto Central do Brasil sobreviveria à subida abrupta dos mares e aos demais desastres que chegariam com o novo milênio. O novo milênio chegou, e o Brasil sentiu afinal que tinha ele mesmo chegado ao futuro. Aquele futuro que Stefan Zweig sacou tão bem. Mas as notícias sobre o crescimento das áreas faveladas nas cidades brasileiras, aliadas ao crescimento zero que sucedeu ao milagre da época da campanha de Dilma, fazem pensar em planejar um desânimo. Mais uma vez.

Enquanto escrevo no Leblon, ouço com espanto um carro de som que passa pela minha porta tocando “Boas Festas” de Assis Valente em volume de "Jingle bells". O vídeo que rola na internet tem uma versão dessa canção americana (ou será inglesa?) com alguns sotaques do nordeste brasileiro mas fincada em percussão e guitarra baianas. Sou velho o bastante para lembrar da marchinha de Assis Valente como canção de Natal por excelência, inclusive com uma gravação em harpa paraguaia que, quando surgiu, já um tanto tardia, era obrigatória nas festas de fim de ano. "Jingle Bells" era conhecida (acho que João Dias a gravou nos anos 50, com a letra em português que conhecemos), mas o “Anoiteceu/ O sino gemeu” de Assis era que marcava a temporada natalina. Como se sabe, é uma canção de Natal com letra pessimista, coisa rara em toda parte e talvez mesmo impensável em todos os países ocidentais. Mas é uma canção irresistivelmente doce ao canto, profundamente concorde com a atmosfera do Natal. É assim que os brasileiros sempre a escutamos. Observo que ela já não é tão ouvida ultimamente e suponho que gente da geração de meu filho de 19 anos talvez nem a conheça bem. Seria uma pena. João Gilberto a considera uma expressão de grande musicalidade (sua interpretação dela, que só se pode ouvir num vídeo do programa de TV que ele gravou faz já muito anos, é uma das coisas mais bonitas que o Brasil pôde vivenciar enquanto esperava o futuro). Brasília não é celeiro de boas notícias, mas quem sabe? Há quem diga que ela mesma foi péssima notícia. Mas eu sou sebastianista joãogilbertiano e, louco, ainda acho que o pessimismo explícito e oculto da canção de Assis diz algo sobre o Brasil que nós ainda não estamos à altura de entender direito. E olha que eu próprio já cantei essa música na TV com um revólver apontado para minha cabeça.

O fato é que eu acreditava que não gostava nem gostaria nunca de Natal. Mas admito que já faz uns 10 anos que venho mudando a esse respeito. Talvez isso se deva a eu ter sido sempre um cultuador da noite de São Silvestre (como Nietzche), em que grandes promessas se impõem, e os réveillons me tenham frustrado com quase intolerável insistência. Fui me refugiando no Natal, que sempre compunha para mim o quadro chato que virou clichê de festa de família. Não que fosse assim na minha infância – ou em qualquer época na casa dos meus pais. Mas o Natal de sentimentalidade compulsória já me irritava desde que os galhos de pitangueira foram substituídos por lâmpadas, o presépio pelos pinheiros de plástico e a areia da praia pelas contrafações de neve obtidas com algodão e isopor. Hoje sinto um pouco de saudade do algodão. Foi no começo de minha vida adulta que decidi desprezar o Natal de vez. Hoje confesso que até a árvore da Lagoa às vezes me toca o coração (menos quando tenho de enfrentar engarrafamentos suplementares por causa da aglomeração de curiosos na Curva do Calombo).

As festas de virada de ano, que sempre me excitavam, começaram a me deixar frio. Ou pelo menos relativamente frio. Não sei se foi aquele réveillon da Praia de Copacabana em homenagem a Tom Jobim em que um erro de Paulinho da Viola deu asas aos instintos jornalísticos mais baixos ou se foram as subsequentes festas de Ano Novo de que esperei tanto e que nada me deram – ou tiraram algo de mim -, ou quem sabe, as tristezas acumuladas nos anos mais recentes, o certo é que tenho me precavido contra as expectativas de Ano Bom. Seja como for, um fundo de excitação resta: sou louco por festas. Na verdade é isso que ressurge na iminência do Natal. É como no carnaval: meu corpo todo se eletriza à aproximação. O réveillon meio que perdeu esse encantamento. O Natal ficou com um resto dele. O ano que vem não trará o fim do mundo, bem provavelmente, pois, como na outra canção de Assis, esses anúncios são sempre inconvenientemente desmentidos pelo seguir difícil dos dias. Sinto-me num engarrafamento na Curva do Calombo.

Caetano Veloso.

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