Detalhes rítmicos (10/06/2012)
Eu disse aqui que nunca tinha lido nenhuma coletânea de textos de Paulo Francis. Pois bem, fui à Livraria da Travessa de Ipanema (um dos lugares a que mais gosto de ir na vida) comprar "A esquerda que não teme dizer seu nome", de Vladimir Safatle, e dei de cara com o "Diário da corte". Comprei os dois. Li o do Safatle todo na mesma noite e deixei o Francis para o dia seguinte. Engraçado ler um sugerindo que esqueçamos a queda do Muro de Berlim e o outro profetizando desastres opostos à crise mundial de 2008, a crise que nunca acabou.
Assisti a "Cidadão Boilesen". Muito intenso. Lamentei que o diretor tenha-nos deixado ouvir tão pouco da fala do personagem retratado. Logo no início, ele diz umas palavras no que parece ser português brasileiro sem sotaque. Mas o som desaparece sob uma voz de comentarista e não temos como confirmar ou nuançar essa impressão. Por alguma razão me pareceu relevante captar qual o grau de brasilidade atingido pela fala dele. Senti essa necessidade bem antes de, no filme, um dinamarquês que o conhecia dizer que Boilesen encontrou no Brasil terreno propício para desenvolver um lado sinistro de sua personalidade que seria impossível de desenvolver na Dinamarca. O argumento não era infundado: ele dizia que na América Latina havia um ambiente sombrio que permitiu ao cara fazer o que seria impensável na Escandinávia. E de fato não se pode imaginar um governo sueco ou finlandês aceitando dinheiro de empresário para financiar centros de tortura. Mas confesso que imediatamente pensei em Anders Behring Breivik, o direitista norueguês que matou 76 pessoas, citando, em seu longuíssimo texto, o Brasil como exemplo de país disfuncional, por conta sobretudo da mistura de raças, tudo a que ele se contrapõe. Esperei em vão outra cena com fala de Boilesen para sentir até onde tinha ido sua identificação com o Brasil.
É duro ouvir agentes da repressão relembrando fatos e cenas (nem sempre de acordo uns com os outros). Boilesen, que é nome de rua em São Paulo, era presidente do grupo Ultra, que vendia Ultragás, o conhecidíssimo gás de cozinha. É dito por muitos entrevistados que vários outros empresários, em geral arregimentados pelo próprio Boilesen, e também banqueiros, colaboraram na criação da Operação Bandeirante. Sabe-se que, dos procurados, dois se recusaram firmemente a aderir: Ermínio de Morais e José Mindlin. Boilesen parece que tinha prazer em ver comunistas sendo torturados. Um grupo de guerrilheiros o matou a tiros na rua. Um policial lê a lista desses vingadores e o que foi feito deles: a grande maioria foi executada pela repressão pouco depois. Outros foram presos mais tarde. Alguns sumiram. Um está vivo e ensina música no Rio de Janeiro. Ele aparece no filme.
O livro de Safatle, embora curto, é muito cheio de questões complexas e discutíveis, mas o caso de toda ação contrária a um Estado ilegal ser uma ação legal faz sentido para mim. Talvez eu retirasse o "toda". Mas sempre tendi a ver desse ponto de vista os que lutaram contra a ditadura. O cara que dirigia o carro que levava os atiradores que mataram Boilesen e hoje ensina violão me surge como alguém que tentou lutar uma luta legítima. Sou talvez demasiado inclinado à esquerda, já que o golpe de 1964 teve o apoio de numerosas multidões que saíram às ruas para saudá-lo, bem mais numerosas do que a mais numerosa das que se levantaram pela redemocratização. Mas é que considero crimes de Estado algo mais grava do que crimes privados: estes se dão contra a ordem estabelecida, aqueles não enfrentam coerção. Quem se bate contra um estado criminoso bate-se contra o horror institucionalizado. Quando caiu o Muro de Berlim, Ana Maria Bahiana me perguntou, numa entrevista, se eu não tinha ficado surpreso. Respondi que na verdade não. Eu tinha desejado a queda daquele muro - e o que é desejado não é inesperado. Claro que havia ignorância minha: eu não estava atento aos detalhes rítmicos da história contemporânea. A queda do Muro surpreendeu muitos observadores políticos avisados. Digo apenas que dissidentes do bloco comunista tinham simpatia desde sempre, como os rebeldes da ALN.
Mas tudo isso indica que certos princípios se sobrepõem às cores políticas. Lendo Safatle, me dei conta de quão velho sou. Atribuo à juventude do autor o destemor da volta ao tom opressivo da esquerda "indiferente" e "universalista" de minha juventude. Questões de raça, sexo, nacionalidade e estética eram inexistentes (na verdade, estorvos no caminho da Revolução; o "socialismo branco" da Escandinávia (que, no entanto, ele hoje usa como exemplo positivo), também. O Chile de Allende, como o de Pinochet, convivia, mudo, com a criminalização da homossexualidade (que lá só deixou de ser crime em 1999) e com a interdição do divórcio (só admitido em 2004). Eu gostava de Francis por ele defender ideias liberais que já me atraíam antes de ele as adotar (e lamentava que ele o fizesse de modo tão caricato). Francis era uma humilhação: seu texto jornalístico não tem par no Brasil. Vívido, direto, cheio de humor. Eu o adorava desde a adolescência (o organizador do livro não cita a revista "Senhor", onde o descobri). Minha versão da história da briga dele comigo, em que ele foi tão baixo, eu deixo para contar na semana que vem: li mais os outros artigos - irresistíveis. Sobretudo para contrastá-los com a cabeça de concreto armado do Vladimir.
Caetano Veloso.
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