Dia da Consciência Negra (20/11/2011)

Na Praça do Mercado, em Santo Amaro, festejávamos o 13 de maio. Foi no ano passado. O bembé do mercado é festa tradicional de minha cidade. Começou em 1889, um ano depois da Abolição. Quando éramos meninos, meu pai falava com carinho e mesmo um certo orgulho dessa festa. Nos levava para assistir e, à medida que fomos crescendo, continuou nos encorajando a que participássemos. Parece que é a única celebração pública do 13 de Maio que se faz no Brasil. “Bembé” é uma outra palavra para candomblé — ou para os batuques que o acompanham e sustentam (há canções cubanas em que a palavra aparece com o mesmo sentido). Carlinhos, filho de Edith do Prato, sempre usava essa palavra para se referir a qualquer festa de orixá que se desse na cidade, quase todas em recintos fechados. O bembé do 13 de Maio é na rua.

Para celebrar a existência dessa celebração, o secretário de Cultura do município (que é meu irmão Rodrigo, petista desde o nascimento do PT) interveio na arrumação da festa e convidou entidades ligadas à defesa do negro no Brasil e o Ministério da Cultura (ainda sob Juca Ferreira) enviou seu representante. A professora Zilda Paim, conhecedora e amante da história de Santo Amaro, falou sobre a importância da festa. A professora Mabel (que também é minha irmã) relembrou as idas ao Mercado com meu pai. Tanto a representante do Movimento Negro quanto o do Ministério falaram da consciência do negro brasileiro e, enquanto relembravam Zumbi, não mencionaram nada referente à Abolição — exceto se quisermos tomar como tal o repúdio à “liberdade dada” a que um deles fez menção.

Mabel gostava da versão edulcorada do nome “bembé”: teria sido uma corruptela de Isabel (Isabé, Zabé), aceitando inclusive a hipótese de tratar-se de uma contração de “o bem de Isabel”. Nunca acreditei nisso. Por mera intuição linguística, se não por reação instintiva àquilo que Mangabeira Unger caracteriza, tão agudamente, como “sentimentalização das relações desiguais”. Mas a vontade de apagar a princesa do mapa não me parece nem um milímetro mais realista. De modo que, quando chegou a minha vez de falar (fui convidado porque tenho uma composição intitulada “13 de Maio”, que canta a tradição do festejo), gritei vivas aos nomes da Princesa Isabel e de Joaquim Nabuco.

Sei que Liv Sovik já caracterizou meu disco que contém essa canção (e a transformação do trecho mais denso de “Minha formação”, de Nabuco, em peça musical), assim como minha identificação com as posições de Nabuco, como um olhar “do ponto de vista do senhor”. Não faz mal, como diria Lygia Clark. Continuo fazendo o contraponto que me parece essencial ao discurso que racializa a discussão sobre a sociedade brasileira. Esse discurso me pareceu não apenas desejável, mas urgente, quando a sentimentalização ameaçava apagar todas as arestas de nossa vida, tornando impossível até mesmo uma leitura corajosa das estatísticas. Só poso de chato porque considero o assunto importante demais para parar no estágio ainda superficial em que se encontra.

Mitos são essenciais à saúde coletiva. Quando eu era novo, ouvia mulatos claros gritarem a negros óbvios que parecessem ter feito algo errado aos olhos daqueles: “A culpada é a Princesa Isabel”. A mãe de meu padrinho (“de apresentação”, pois o amigo que meu pai escolhera para ser meu padrinho era um preto que morava em São Paulo e não pôde vir para o batizado aí esse mulato gordo e surdo, pessoa maravilhosa, tomou o lugar na cerimônia e, para sempre, na minha vida) era uma mulata de olhos verdes que se lembrava do dia 13 de maio de 1888. Uma festa. Seus olhos se enchiam ainda da explosão de alegria que ela evocava. Então, agora, estávamos repetindo a comemoração dessa alegria, tal como a população da cidade faz desde o ano seguinte à Abolição, e nem se podia falar na Princesa Isabel? E toda a luta abolicionista teria que ficar esquecida nesse momento, num desprezo pela mitologia que o povo negro (e quase negro, como nós) alimenta há mais de século? Zumbi era citado no 13 de Maio e os abolicionistas, não? Sim. Zumbi: mitos são essenciais à saúde coletiva. Mas, como diz uma outra canção que fiz sobre o tema, “Zabé come Zumbi, Zumbi come Zabé”.

No domingo em que sai este artigo estarei cantando com Seu Jorge, louvando o Dia da Consciência Negra. Não há nada que eu mais quisesse nesse dia do que persuadir a todos os interessados na questão a ler o capítulo “O mandato da raça negra”, de “O Abolicionismo”, esse livro magnífico de Joaquim Nabuco. Neguinho entende quem é lendo aquilo. Descendente de senhores e de escravos, sou um que nota que no Brasil “neguinho” quer dizer todo mundo, qualquer um, a gente. Ecoo o grito dos que cantam o nome de Zumbi mas enriqueço a polifonia com os nomes Nabuco e Zabé. “O Abolicionismo” pode ser baixado em dominiopublico.gov.br. É só nego procurar no Google. Um aperitivo: “Por esses sacrifícios sem número, por esses sofrimentos, cuja terrível concatenação com o progresso lento do país faz da história do Brasil um dos mais tristes episódios do povoamento da América, a raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela pode, com muito mais direito, chamar sua.” E mais: “Quem pode dizer que a raça negra não tem direito de protestar perante o mundo e perante a história contra o procedimento do Brasil?” Tudo escrito antes de 1888. Vale a pena ler o texto integral. E, depois, o resto do livro.

Caetano Veloso.

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