Dinheiro, não (09/10/2011)
Nunca fiz um anúncio de produto comercial. Acho que comecei essa restrição justamente por causa do tropicalismo. Como as canções se aproximavam do jingle - e nomes de marcas, celebridades e instituições apareciam com muita frequência nas letras - meu sentimento anticomercial se hipertrofiou. Era uma espécie de defesa instintiva e também de compensação. Curiosamente, foi em 1967 que aprendi a gostar de ver, ler ou ouvir anúncios. Eles vieram junto com o rock e Hollywood. Botei a palavra "lanchonete" em "Baby" porque eu a detestava. Parecia-me que, cantando-a, realizava um ato de purificação. Sempre odiei compras. Vencendo a timidez diante de balconistas, aprendi a comprar, com algum prazer, livros, discos e cigarros. Nada mais.
Bem, minha única despesa durante os primeiros 17 anos de minha vida eram bilhetes de cinema. No começo uma entrada custava 400 réis (40 centavos de cruzeiro), minha mãe me dava uma moeda de 500 réis e o bilheteiro me dava um tostão (dez centavos) de troco, que eu guardava até completar 40 centavos, com os quais ia ao cinema sem pedir dinheiro a minha mãe. Roupas sempre foram compradas por ela e, depois, por minhas mulheres, sem que eu sequer visse o ato. Hoje meu filho Moreno discorda de mim, por eu achar bonito ver os supermercados com todas aquelas latas coloridas enfileiradas: ele tem um horror inocente, igual ao que eu próprio tinha quando era garoto, a toda essa exibição vulgar de produtos e nem quer aprender a poesia possível disso. Aliás, eu próprio, vendo aquele filme de Kathryn Bigelow sobre a Guerra do Iraque, aquele que tem um título um tanto enigmático em inglês, "The hurt locker" (e um muito feio em português, "Guerra ao terror"), senti a violência cultural dessas prateleiras de supervendas. Nesse filme poderoso, a imagem esmagadora do interior de um supermercado americano surge para mostrar o tédio que sente, em dias de paz, um rapaz "viciado em guerra". Mas a crítica profunda, angustiada, quase desesperada do mundo do consumo se impõe (independentemente da interação consciente da diretora) como força estética dominante. A guerra dos americanos no país árabe pode ser sentida, por alguns segundos, como uma abominação absoluta. As latas de Campbell's de Warhol são relembradas ali, mas como mais um verniz sobre o brilho da podridão.
Sou anticonsumista. Sempre fui. E ainda me surpreendo. Quando Kassab retirou os anúncios grandes das ruas de Sampa, me lembrei de um texto de Millôr Fernandes que eu adoro, em que ele diz odiar compras mas adorar vitrines e letreiros, fotos e imagens ligadas ao mundo das vendas. Li, na altura da decisão de Kassab, um artigo de Contardo Calligaris em que ele dizia temer o que eu também temia: que São Paulo fosse virar uma Berlim Oriental antes da queda do Muro - árida, sem cores, de uma austeridade triste. Mas eis que os anúncios gigantes foram tirados e São Paulo ficou mais bonita. De modo que já aprendi que esse barulho visual dos vendilhões não deixaria saudades incuráveis.
Gosto mais da cena do Cristo defendendo a adúltera (e os que desrespeitam o shabat - "a lei foi feita para o homem, não homem para a lei; a palavra mata mas o espírito vivifica") do que da cena da expulsão dos vendilhões do templo. Mas não desprezo esta última.
Posso estar aprendendo a gostar de Los Angeles e da Barra da Tijuca, mas minha reação à transformação não cuidada da cidade da Bahia é igual à de Stefan Zweig quando, apaixonado pelo Centro do Rio, viu o nascimento de Copacabana como uma ameaça de desvirtuar o sentido profundo da poesia da cidade. Posso imaginar um futuro em que minha rejeição do esquema estradas-megashopping-malls pareça estranha. Mas, por agora, só vejo o mau gosto arizonizante e os engarrafamentos.
Que diabo de liberal sou eu? O verso "Não me amarra dinheiro, não", que abre "Beleza Pura", se inspirou numa canção que amei desde a primeira vez que ouvi. Roberto Santana me apresentou a um amigo seu que cantava uma cantiga deslumbrante: "Apois pro cantador e violeiro/ Só há três coisas nesse mundo vão:/ Amor, viola, alforria e nunca dinheiro/ Viola, alforria, amor. Dinheiro, não." Sempre quis crer que foi do próprio Elomar, genial autor da canção, que a ouvi pela primeira vez. Mas Santana, que já gosta de pôr em dúvida minha memória, mesmo em coisas de que tenho certeza, aqui teria muita chance de me desmentir com razão. A frase de "Beleza Pura" abre o show que faço com Maria Gadú. Fico feliz e orgulhoso. Meu sonho seria cantar, num próximo show, "Violeiro" (é este o título da canção de Elomar) com a bandaCê, mas não me conformo de não atingir o grave da palavra "cantador", que na voz do autor soa simplesmente divina. Acho que não vale a pena mudar de tom: tem que ser aquele som da voz de Elomar no grave.
O que importa é que cada repetição do refrão de "Beleza Pura" possa trazer ao pensamento do ouvinte o conteúdo de Elomar. Sentar-me-ia com ele na Praça da Liberdade, entre os indignados que protestam contra Wall Street. Sou um liberal assim: no tempo de Reagan e Thatcher eu disse em entrevista que a direita, que sempre acusava os marxistas de economicismo, estava mais economicista do que Marx e que eu pensava em São Francisco de Assis. Antes de Toni Negri. Mas acho que em clima diferente do dele. E não gosto de Zizek nem de Badiou.
Caetano Veloso.
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