Dívida (15/07/2012)
Vim a uma Bahia chuvosa só para cantar num evento fechado, esse tipo de compromisso que ajuda a pagar as contas de quem não crê mais em viver de direitos autorais. Mas nem a chuva desbotou o encanto da cidade nem o evento deixou de oferecer alegrias. Sob nuvens escuras, as dunas da parte norte do litoral parecem paisagens de neve. A areia aqui é mesmo branca como a neve, coisa curiosa que não vejo nem em Natal nem no Ceará nem em Cabo Frio, onde também há dunas. Acho curioso sobretudo porque a areia das praias de Salvador é morena. Kátia Mattoso deve ter dito, naquele livro tão bonito sobre a geografia da região da Baía de Todos os Santos, algo que explique a razão dessa brancura. Mas não lembro. O vento levantará só os grãos alvos da mistura que dá o moreno das praias baianas, carregando-os para as encostas? Não sei. Só tenho pena de que, apesar da canção extraordinária de Caymmi, não se tenha impedido que a construção civil desbastasse essa joia natural. E a turma de ACM tenha feito a obra mais criminosamente feia na Lagoa do Abaeté. Mesmo assim, o que resta dessas dunas é belíssimo — e ainda dá para a gente tomar vergonha na cara e preservar. Nesses dias de inverno, elas me apareceram deslumbrantes. E no evento havia a orquestra Neojibá. Você pode procurar no YouTube. No mínimo a encontrará tocando “Tico-tico no fubá” em algum palco europeu. Dá orgulho. Gente jovem da Bahia, com cara de gente da Bahia, tocando com afinação e firmeza.
A passagem de Koellreutter, Eros Martim Gonçalves, João Augusto Azevedo, Yanka Rudzka e Lina Bo Bardi pela Salvador entre os últimos anos 1950 e os primeiros 1960 não foi em vão, já sabemos: o cinema de Glauber (para não dizer o Cinema Novo como um todo) e o Tropicalismo são fenômenos que têm débito direto com o que essas pessoas fizeram aqui. Lina não era da equipe do reitor Edgard Santos, a cuja visão quase sobrenaturalmente inspirada devemos a vinda de todos os outros citados, mas terminou colaborando com Martim Gonçalves nas montagens da “Ópera de três tostões”, de Brecht, e do “Calígula” de Camus, no vão incendiado do Castro Alves. Quando a revista “Cahiers du Cinéma” entrevistou um Glauber incensado por seus críticos, ele atribuiu a força estética de seus filmes à visão da peça de Brecht na versão baiana. E eu tenho repetido quão impactante foi o ambiente cultural soteropolitano dessa época para Bethânia e para mim. Há o livro de Antonio Risério sobre a vanguarda na Bahia dos anos 1950 até 1964, quando veio o golpe militar e, concluindo um trabalho contra Lina feito por Odorico Tavares, desativou o Museu de Arte Moderna (que ficava no foyer do Castro Alves queimado) e inaugurou uma exposição de “material subversivo”.
Mas não gosto que se pense que Odoricos e milicos venceram. Lina (que intitulou um artigo sobre seu período baiano, com amarga ironia, “Cinco anos entre os brancos”) disse que não voltaria à cidade. Mas voltou e fez a sede do Olodum, a reforma da Misericórdia e a Casa do Benin. Comove-me pensar que ela tenha entrado em sintonia com a explosão de cultura popular (tão importantemente negra) que, a partir dos anos 1970, deu vazão à energia artística da cidade. Ela atendeu a convite de Roberto Pinho, então colaborando com Mário Kertész, que era prefeito (o que não quer dizer que ele deva voltar a ser). Esse laço direto entre ela e o novo carnaval baiano é, para mim, simbólico. Diz explicitamente da energia histórica (expressão que me agrada muito, que aprendi com Roberto Schwarz e que Reinaldo Azevedo tentou em vão desqualificar) de Salvador. Essa energia está também no quanto teatro se fez nesses anos desprotegidos: no Bando de Teatro Olodum, nas comédias de grande popularidade, nas carreiras brilhantes de Wagner Moura, Lázaro Ramos e Wladimir Brichta, para citar só os mais óbvios. E está na orquestra Rumpilezz, na Sambone e nessa Neojibá (sinfônica) com cujo conjunto de metais tive a honra e a alegria de tocar na quinta-feira.
Escrevo isso tudo ainda na Bahia, em cantinhos do aeroporto. Paro para continuar no avião. Volto ao Rio para ver o “Recanto” de Gal em sua estreia carioca numa sala de espetáculos grande. Ao chegar ao portão de embarque, quem encontro? Laís Salgado, a ex-dançarina da Escola de Dança da Universidade da Bahia a quem devo meu encontro com Gal. Ela estava embarcando um dos filhos bonitos que tem com o dançarino americano Clyde Morgan. Fiquei tão emocionado que nem pude comentar com ela toda essa sincronicidade. Eu saindo da Bahia, escrevendo sobre essas coisas, indo ver Gal no Rio, lendo Tom Zé na “Bravo” (volto ao “lixo lógico” domingo próximo), e encontrar a pessoa que me disse que eu devia ouvir uma menina chamada Gracinha, Gal, vizinha de uma aluna da escola de dança chamada Dedé.
Tom Zé deve diretamente a Koellreutter: estudou nos Seminários Livres de Música da UFBA. Mas eu dizer aqui que “Tropa de elite” deve muito a Eros Martim Gonçalves não deve parecer absurdo a ninguém, embora Padilha nem precise saber quem foi Eros.
Comecei a ler um livro que desde as primeiras páginas me impressiona: chama-se “Debt” (“dívida”, em inglês), de David Graeber, um antropólogo anarquista americano. É um livro que faz pensar. A começar pelo sentido da palavra “dívida”. Trouxe-o para ler em Salvador. E não pensei que fosse pensar na dívida inquantificável. Pode ser que domingo eu, para manter a confusão, misture o lixo lógico com Graeber.
Caetano Veloso.
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