Caetano Veloso: 'A Bahia ocupa lugar central dentro de mim'
Entrevista para a Revista Muito (04 de maio de 2014)
por Marina Novelli.
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Enquanto em Salvador se lê a conversa a seguir, Caetano Veloso não está na Bahia. Nem no Brasil. Ao cair da noite de amanhã, o cantor sobe ao palco em Lisboa para o show de abertura da turnê europeia de Abraçaço, seu disco mais recente. De lá, parte para a Itália, onde se apresenta em seis cidades, entre as quais Roma e Milão. Segue viagem então para a distante Liubliana (Eslovênia), depois, Paris, Zurique, Estocolmo, Londres, Madri, Barcelona, Açores e, por fim, canta no Porto. Uma odisseia para quem, um dia, pensou jamais deixar Santo Amaro da Purificação. De Coração vagabundo, faixa 1 do disco Domingo, gravado com Gal Costa - de tom íntimo joão-gilbertiano -, até A Bossa Nova é foda, faixa que abre Abraçaço e que volta a versar sobre a magnitude de João Gilberto, passaram-se quase cinco décadas. Uma vida de dedicação à cultura do Brasil através da música popular, de devoção aos milagres do povo, de investigação filosófico-musical sobre ser, sobre amar. O vasto cancioneiro desse democrático mulato baiano é o resultado do esforço ambicioso de guardar em si o mundo. Mesmo cansado, só de pensar nas longas horas de avião e hotel a seguir, ainda assim, às vésperas de completar 72 anos, Caetano tem fôlego para querer afirmar-se em nossa história para além das "miragens deslumbradas do pop americano". Ao encarar a maturidade física, vislumbra, como o escritor francês Marcel Proust, o alimento para a alma contido no tempo perdido, tempo vivido. Em sua casa no Rio de Janeiro, onde mora com o filho do meio, Zeca, Caetano sorriu para as fotos desta edição e para o pôr do sol que coloria de rosa o mar e o céu do Leblon. Mas foi de sua casa, na Bahia, à beira do mar do Rio Vermelho, que ele falou à Muito por e-mail. Salvador, sua "primeira cidade grande", é ainda o lugar onde passa seus verões e convive com amigos do tempo de adolescência e outros que fez ao longo da vida. Não troca o milk-shake da Cubana por nenhum outro e sabe que fica na Ribeira o melhor sorvete que há. Mas, também, acompanha o que chama de desfiguração da cidade e fala, a seguir, sobre a esperança que tem na superação de seus problemas.
Em 1996, em entrevista ao Roda Viva, você disse que o Brasil ainda não havia conseguido se tornar uma sociedade saudável, que não apresentava ainda um mínimo de justiça social e tampouco gerava grande riqueza material, mas que era um país de originalidade enorme. Já disse também, em Americanos, que aqui a indefinição é o regime. Quase duas décadas depois, como você vê o Brasil?
Não sei se feliz ou infelizmente, vejo as coisas praticamente do mesmo modo ainda hoje. O ser humano é um nó de questões difíceis. Todos os temas da crueldade, da miséria, do horror são visíveis no Brasil. A maravilha de viver também. O Brasil não tem nenhuma qualidade essencial que o ponha acima ou abaixo de qualquer outra sociedade humana, de modo necessário. E a própria realidade de uma nação é algo pouco palpável. Acontece que o Brasil é onde nascemos, vivemos e atuamos. É claro que alguns aglomerados humanos chegam a realizações que outros não alcançam, em algum momento da história. O Brasil tem se sentido incapaz, em comparação com outras nações. Mas tem indicadores objetivos claros de ser uma oportunidade de experimentação importante. Somos um país de dimensões continentais, no hemisfério sul, na América, somos altamente miscigenados racialmente, temos a maior população negra fora do continente africano e falamos português, em suma: uma combinação de desvantagens com exuberâncias que pode ser tomada como sugestão de atitude original. Algo de uma atitude assim já é assumido pela população em seus mitos sobre si pró pria, mas também em aspectos da vida prática. Tais mitos, em geral, levam à certeza de que nada temos de bom em nossas origens, sempre tomando os personagens históricos de nossa formação como figuras ridículas, o que nos exime de responsabilidades. As fantasias ufanistas são o outro lado da moeda. Mas há indícios de que muitos entre nós desejam superar esse esquema. Uma revolução na educação, tomada como determinação política de um governo corajoso, mudaria tudo com muita rapidez.
Eucanaã Ferraz, no livro que reúne um conjunto de suas letras, fala de uma aptidão para o discurso público. Você também já manifestou certo receio de que o sucesso conquistado por você, Gal, Gil e Bethânia fosse devido a uma mera vocação para o estrelato. No entanto, todos têm obra de realização artística inegável. O que é, para você, ser artista?
Sempre me senti artista. Talvez pudesse ser professor, o que não é algo tão diferente assim de ser artista. Mas, desde menino, só me vejo desenhando, cantando, imaginando filmes, escrevendo. Essa observação a respeito de mim, de Gal, de Bethânia e de Gil apareceu num momento de reflexão, em meio à confissão de que eu intuía, já em 1964, que nós quatro teríamos algo forte a dizer no ambiente cultural do país. Quando escrevi Verdade Tropical, me perguntei se isso não teria sido uma mera captação da vocação para o estrelato. Não é assim que nos vejo. Pelo menos, não somos só isso. Temos contribuído para a saúde cultural da nossa gente. Os discos de Bethânia na maturidade são um exemplo de dignidade e inspiração. Isso não está ausente do que temos produzido, os outros três.
O grupo mencionado acima, acompanhado de outros artistas baianos, apresentava-se no palco do então recém-inaugurado Teatro Vila Velha há exatos 50 anos. Você pode contar memórias desse momento, da ideia à apresentação e repertório?
O pessoal do grupo Teatro dos Novos (Échio Reis, Carlos Petrovich, Carmen Bittencourt, Othon Bastos, Theresa Sá, sob a direção de João Augusto Azevedo) construiu o Teatro Vila Velha no Passeio Público e quis fazer uma semana de espetáculos para a inauguração. Gal, Bethânia, Gil e eu já nos encontrávamos com assiduidade, sobretudo na casa de Maria Muniz, no Boulevard Suíço, para cantar e tocar juntos. A turma do teatro já nos conhecia. Tom Zé já era conhecido por seu trabalho no CPC (Centro de Cultura Popular) da UNE. Alcivando Luz, por sua participação na sinfônica da universidade e por suas harmonias no violão, que ele afinava de modos variados. Djalma Corrêa, além de tocar bateria e percussão, estudava música eletrônica e fazia peças experimentais. Fernando Lona tinha um punhado de canções românticas de tom interiorano. A turma do Vila Velha não convidou apenas esses iniciantes da música popular: a semana de inauguração contou com apresentação do grupo da Escola de Dança da universidade e de uma orquestra de câmara dos Seminários Livres e Música (também da Ufba). Os shows foram um sucesso, mas a nossa noite foi um acontecimento na cidade. Bethânia e Gal cantando Sol Negro, a canção que escrevi para as duas cantarem juntas, em contraponto, foram ovacionadas como se fossem divas consagradas. Quem produziu e organizou tudo foi Roberto Santana, que era nosso amigo e muito capaz de liderança. Ele estava em diálogo com os atores e o diretor do grupo de teatro. Gil e Alcivando se responsabilizaram pela direção musical. Sobretudo Gil, que trabalhava como um dínamo. Fui ficando com a roteirização e concepção do espetáculo. Era muito bom conversar num bar que ficava na esquina da avenida Sete com a rua que vem do Campo Grande, depois dos ensaios. Ou ficar encostado nas pilastras do Passeio Público de madrugada. Gil era incansável: saía dos ensaios e ia para a alfândega, onde trabalhava. De lá, ia direto para a faculdade de administração, onde era aluno exemplar. A impressão que nosso espetáculo deu foi de um grupo de artistas profissionais, capaz de interessar plateias de quaisquer outras cidades.
Você nasceu em Santo Amaro, viveu um período importante em São Paulo, mora e cria seus filhos mais jovens no Rio. Quando voltou de Londres, disse que Curitiba tornara-se a sua cidade favorita, mas que imaginava uma recuperação como a da cidade paranaense na época - que resgatara o Largo da Ordem - na Cidade da Baía. Gostaria que falasse sobre Salvador e sua relação com a cidade.
Salvador foi minha primeira cidade grande. Nunca nenhuma foi maior. Tomei meu primeiro milk-shake na Cubana quando tinha uns 8 anos. Nunca me esqueci. Faz poucos dias, estive na Cubana e tomei um milk-shake com aqueles bolinhos de lá, que são sempre os mesmos. A prefeitura horrível, que Lelé fez para ser provisória, está pintada de branco, o que a deixou leve e salvou a visão da Praça Municipal. O sol estava se pondo por trás dos vidros do Elevador Lacerda. Havia uma grande beleza. Passei pela Barra e vi os trabalhos de finalização do calçadão. Tomara que fique bom. Eu queria que ACM Neto ganhasse a eleição e espero não ter do quê me arrepender. Quando vi o Largo da Ordem tão bem em Curitiba, nos anos 1970, achei que se a região do Pelourinho fosse restaurada - de qualquer maneira - o Brasil teria jeito. O fato é que isso aconteceu. Mesmo com os recuos e as dificuldades, quando vejo que a Bahia, mesmo desfigurada por tudo o que aconteceu nessas décadas (do "milagre brasileiro", que mais serviu para apressar o despovoamento das áreas rurais e superlotar as cidades do que para qualquer outra coisa, às administrações ruinosas de Fernando José e João Henrique, para não falar no boi que Waldir Pires deixou para nós quando abandonou o governo), está viva ainda. Há esperança. Precisamos ver a Praça Castro Alves revitalizada, com o Cine Glauber Rocha, meu amado antigo Cine Guarani, funcionando a todo vapor e outros empreendimentos prosperando. Moro no Rio principalmente porque meus filhos cresceram lá. Quando voltei de Londres, morei em Salvador por três anos. Eu queria fazer psicanálise e aqui não tinha. Planejei ir para São Paulo. Sempre amei o Rio, mas viver e trabalhar em São Paulo me parecia mais concentrado e produtivo. Dedé não queria ir para São Paulo - e eu, afinal, sou um homem do litoral. Fomos, ela, Moreno e eu, para o Rio. Mas, fosse Rio ou São Paulo, eu tinha certeza de que era uma estada provisória: queria voltar para a Bahia. A verdade é que nunca deixei a cidade de todo: mantive a casa de Ondina com Dedé e, depois, comprei uma casa no Rio Vermelho com Paulinha (onde estou neste momento em que respondo a estas perguntas). Sempre passei os verões aqui. Nos últimos anos, tenho ficado menos tempo em Salvador. E este último Carnaval nem vim ver. Sinto falta. Penso menos em voltar a morar aqui do que antes. Mas me sinto ligado ao lugar. Fora do Brasil, acho que só poderia viver em Nova Iorque. Mas não tenho vontade nenhuma de viver fora do Brasil. Me sinto em casa no Rio, a cidade em que mais longamente tenho vivido. Mas a Bahia ocupa um lugar mais central dentro de mim.
Em Jenipapo Absoluto, você diz que "cantar é mais do que lembrar/ é mais do que ter tido aquilo então/ mais do que viver, do que sonhar/ é ter o coração daquilo". A música popular é a expressão artística de maior vigor no Brasil. Por quê? De onde vem essa força?
A frase da canção me lembrava o que senti ao ler Proust (Marcel) - e o que Deleuze (Gilles) explica que percebeu naquele autor. Desde menino as canções me impressionam. Minha mãe cantava canções já esquecidas, tínhamos discos de Caymmi e de Aracy (de Almeida) cantando Noel (Rosa). Além disso, eu ouvia tudo o que tocava no rádio - e aprendia a cantar. Fui vendo a dimensão da canção popular no nosso país. Ouvia Luiz Gonzaga num programa que começava com Boiadeiro. Francisco Alves na Rádio Nacional. Aliás, morei no Rio o ano de 1956 e fui muitas vezes ao auditório da Nacional, onde vi Cauby, Dolores Duran, Linda e Dircinha Baptista, Nora Ney, Emilinha Borba, Marlene, Ângela Maria, Jorge Gulart, todo mundo. Quando, eu já de volta a Santo Amaro, João Gilberto apareceu, isso se intensificou enormemente: o passado e o futuro da música popular brasileira ganharam grande amplitude. Eu fiquei excitado com a constatação de que tínhamos algo imenso de que cuidar. Essa força deve vir de muitas das nossas fraquezas, mas também de nossa potência escondida. João Gilberto e Milton Nascimento não são coisas que possam surgir em vão.
Você dirigiu um filme em 1986, O Cinema Falado, já fez trilhas sonoras (Lisbela e o prisioneiro, Tieta, Frida...) e também pequenas participações, como em Onda Nova, de 1983. Você faria um outro filme? Sobre o quê?
Eu faria um filme com Salvador como tema central. Há muito do que sonhei em Trampolim do Forte, um filme ingênuo mas extraordinariamente belo quando retrata a paisagem física e humana do Porto da Barra. Há também algo em Cidade Baixa. Dos filmes em que apareci, gosto de lembrar os de Júlio Bressane, sobretudo Tabu. Das trilhas que fiz, gosto das canções de Tieta (um grande filme!) e do tema de A dama do lotação.
Você fala de uma 'linha evolutiva' da MPB, que viria do samba até a Bossa Nova. Antes do Tropicalismo, você declarara que ninguém de sua geração a retomara de forma integral, e o movimento é visto por você como uma força dessa. Antônio Cícero afirma que a transição do samba à Bossa Nova foi um acontecimento singular. Como você vê hoje esse 'dar um passo à frente' da MPB?
A Bossa Nova foi um acontecimento singular. Mas teve consequências enormes. O Tropicalismo foi uma delas. O aspecto de ruptura foi o que o Tropicalismo apreendeu da Bossa Nova. Quando falei em "linha evolutiva", não estava querendo me referir a algum desenvolvimento uniforme. A Bossa Nova foi uma revolução. Hoje, entre as explosões vitais do funk ou do tecnobrega e as invenções de um Thiago Amud (compositor), há uma tensão que insinua a beira do abismo do subdesenvolvimento. Precisamos, todos, ser superados por quem faça nossa história se afirmar acima da miragem deslumbrada do pop americano. Estamos sempre diante de um desafio. Temos de encará-lo. Fácil não é.
Você não é um homem religioso, abertamente. Já declarou que não acredita em Deus, mas que Gil acredita e você acredita nele. Em entrevista à Muito, Gil disse ter eliminado a polaridade entre crer ou descrer. Você tem uma família religiosa. Como se dá esse diálogo entre gerações?
Ainda mais importante do que Gil: meus três filhos são religiosos. Admiro e invejo Gil por ter superado a polaridade entre crer e descrer. Li com vivo interesse um livro de Roberto Mangabeira chamado A Religião do Futuro, em que as questões que hoje nos aparecem como antagonismo entre crença e descrença também aparecem sob nova luz. É um livro complexo e difícil, mas muito eloquente e sugestivo. Eu próprio tendi a uma atitude antirreligiosa no fim da infância, voltei a respeitar a religiosidade no período tropicalista (eu tinha a impressão de que a esquerda marxista/iluminista/positivista reprimia a religiosidade como se reprime a sexualidade), depois, voltei a me sentir fortemente antirreligioso. Hoje, no convívio com meus filhos e no reconhecimento da complexidade da questão, não me sinto assim tão simplesmente antirreligioso. Adoro quem é antirreligioso convicto, como Antônio Cícero. E também as pessoas que, tendo sido criadas sem religião, não sentem nem necessidade disso nem atração por isso. Mas não é o meu caso. Tendo a ser supersticioso. Mas não respeito muito as minhas próprias superstições.
Em 2006, você lançava Cê e esboçava um desejo de completar um trabalho mais longo com a banda, que viria ser a Banda Cê. Depois de Zii e Zie, você lançou Abraçaço, atendendo a essa vontade. Quis compor um disco inédito para Gal e a turnê de Recanto foi um sucesso. Há algo que ficou de fora? O que quer ainda, Caetano?
Tenho algum orgulho íntimo de Cê e de Recanto. Sinto alegria no trabalho com a Banda Cê. Quero ainda muita coisa. Parece que não fiz nada que desse sentido a todo o resto. Ainda não estou velho o bastante.
Em seu último trabalho, Abraçaço, há uma parceria com Rogério Duarte, um dos mentores do Tropicalismo. Você pode falar mais sobre a canção Gayana e sua relação com Rogério?
É uma canção de Rogério, letra e música. Ele me mandou por e-mail, num vídeo divino, em que ele aparece cantando e tocando violão com aquela barba longa e aquele tapa-olho. Os caras da banda ficaram maravilhados. Eu quis logo gravar. Aquela frase direta: "Eu amo muito você". E aqueles ecos da poesia hindu. Rogério é uma das inteligências mais impressionantes que já encontrei. Ele tem um jeito de deixar as palavras se formarem dentro dele que faz de qualquer argumento que ele apresente algo relevante e pertinente. Tudo parece vivido. E com intensidade. Quando ele me mandou a música, o título que ele próprio tinha escolhido era Hino Gay, porque falava de um amor que não era dito até aquele momento e porque ele queria homenagear algumas figuras da história do pensamento que foram homossexuais. Depois, observando que Gayana é um nome hoje usual na Índia para meninas, e lembrando o sentido de Gai em sânscrito, ele apareceu com esse título que, na verdade, é muito mais bonito. E não interfere na canção, como o outro faria. Eu adoro saber que essa música era ouvida na novela (Joia Rara) em que Caio Blat fez um monge budista. Fico vendo milhões de brasileiros ouvindo uma canção de Rogério em meio a imagens ligadas à Índia. Parece fazer muito sentido para mim.
É uma opinião partilhada entre os jovens que, de sua geração, você é o artista que mais se reinventa, o mais inquieto. Já foi chamado de 'o guru da nova geração'. Você se vê nesse papel de enfrentar constantemente o estabelecido?
Guru da nova geração não sou mesmo. Nem me arvoraria a ser. Inquieto, infelizmente, sim, embora já tenha passado da idade em que a gente precisa ter mais quietude. Não procuro me reinventar. Ao contrário, tento chegar mais perto daquilo que entrevi desde a puberdade. Isso é que me leva a passar de Livro a Cê, de Araçá azul a Qualquer coisa. Vejo que foi preciso quase uma década para o que se esboçou em Cê fosse assimilado por plateias brasileiras e críticos estrangeiros: quase todos dizem que Abraçaço é o melhor dos três discos com a Banda Cê. Eu próprio acho o Cê muito melhor. Mas faço o Abraçaço com tesão. Só preciso é calcular melhor minha resistência aos 71 anos. Com um corpo dessa idade não se deve fazer turnês tão longas e intensas como eu faço; com uma mente dessa idade não se deve compor muitas canções novas: a memória fica sobrecarregada - e, afinal, já há muitas canções por aí.
Você declarou em sua coluna ter 14 anos. Como você encara a maturidade?
Tenho uma identificação adolescente. Disse 14 anos porque foi com essa idade que voltei do Rio para Santo Amaro, meu corpo mudou e tive uma imensa paixão amorosa. Mas, se ser adolescente é melhor do que ser criança, ser adulto é melhor do que ser adolescente. Assim, a maturidade chegou com vantagens. A velhice é que traz coisas chatas. Mesmo assim, é interessante observar o que vai acontecendo com a gente. Claro que a gente passa a maior parte do tempo pensando em outras coisas. Como resolver um problema de rima, de planejamento de viagem, de interpretação de um fato político. Não vivo me observando e pensando em mim mesmo o tempo todo. Mas as novidades da velhice chamam a atenção. Posso repetir que não é necessariamente ruim e que alguém pode ter tido seus piores momentos aos 25 anos e vir a ser muito mais feliz aos 73. Isso é simplesmente provável. Mas as desvantagens do envelhecimento são inegáveis. Nossa vida, no entanto, é feita de significados e sentimentos, de imaginação e projetos, de coisas espirituais, enfim. A passagem do tempo, a perda da vitalidade da juventude, tudo isso pode ser tema para a alma que o vivencia. Também há as vantagens: quando velhos, não estamos mais planejando o que poderemos ser, não estamos fazendo força para esboçar o que queremos dizer. O principal de nossa mensagem pessoal está mais para completo. Não damos muita bola para os erros que cometem a nosso respeito.
Caetano, é bom viver, não é? Pelo menos é a impressão que você dá.
É bom saber que dou essa impressão. É, muitas vezes, o que sinto. Na verdade, basicamente, é o que sinto. Mas sofremos muito. Talvez porque amemos tão intensamente estarmos vivos. É um primeiro amor, um amor primeiro, um amor sem filtro. Todas as filtragens para ele podem ser dolorosas.
Para quem você faz música?
Para você, para mim mesmo, para minha mãe, meu pai e meus irmãos. Para meus filhos e meus amores. Para os desconhecidos. Para ninguém.
Qual a coisa mais importante do mundo?
O amor.