‘Eu gostaria de ter mais talento’, diz Caetano Veloso
Entrevista para O Estado de S.Paulo (11/11/2016)
por Julio Maria.
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Foto: Divulgação.
Se comparado ao homem de 30 anos atrás, Caetano Veloso é um monge chinês. Menos passional, mais reflexivo, suave e contemporizador. Ao se preparar para trazer o show que faz com a sambista Teresa Cristina, dia 17, ao Espaço das Américas, ele fala ao Estado com respostas generosas mas sob a segurança antirréplicas garantida pelo conforto do computador. Caetano, para além do samba de Teresa, diz sobre a reaproximação com Roberto Carlos pós-desentendimentos no grupo Procure Saber (“nossa amizade está acima dessas coisas”), desconstrói repulsas à Igreja Universal, da qual faz parte o prefeito eleito do Rio, Marcelo Crivella (“consumismo e ostentação não é o forte deles”) e expõe uma fragilidade artística surpreendente: “Rita Lee é mais musical e canta com muito mais segurança do que eu... Eu gostaria de ter mais talento”.
O que o leva ao encontro de Teresa Cristina no momento em que todos pensavam que você iria descansar depois de tantos shows da turnê com Gil?
Eu tive uma conversa com Teresa antes de ela apresentar o show no Net Rio e isso repercutiu na atuação dela. Assistindo ao show, fiquei maravilhado. O que me fez, depois, topar viajar com ela para me apresentar apresentando-a foi a decisão de Bob Hurwitz, o presidente do selo Nonesuch, de lançar o CD e o DVD do Canta Cartola mundialmente. Ele ficou entusiasmado com o que ouviu e viu e me animou a voltar a Nova York para reforçar o lançamento. Paralelamente, ele vem me pedindo que faça gravações exaustivas do meu repertório, em sessões de voz e violão, para uma série de CDs que ele sonha em lançar, como vem fazendo com a obra de Randy Newman, sem limite de tempo e independentemente de quaisquer projetos outros que eu venha a realizar. Não fechei essa combinação com ele, mas fiquei curioso e fui rever coisas do meu repertório. Comecei por experimentar músicas que não estivessem no show com Gil. Com isso em mente, disse finalmente a ele e a Paulinha (Paula Lavigne, sua empresária) que faria as apresentações com Teresa. Sim, eu queria e precisava descansar, mas a proposta era irresistível e os shows eram poucos: seis em um mês, com muitos dias de descanso.
Teresa Cristina é uma sambista que, poucos sabem, começou sua experiência musical ouvindo bandas de rock. O que chamou sua atenção desde que a viu?
Descobri a cultura musical de Teresa quando ela foi fazer um dos shows de preparação do Zii e Zie comigo. Sabia todas as minhas músicas. E as de Roberto Carlos. Quando fez um show com a banda de rock Os Outros, no Tom Jobim do Jardim Botânico, fui ver. Repertório de Roberto Carlos. Depois fiquei sabendo que ela conhecia muito heavy metal. Na turnê encontramos os caras de uma banda gringa cujo nome eu nem sei e Teresa ficou excitada por ver esses músicos de quem ela tinha sido fã. No show com as músicas de Cartola, ela apresenta muito do colorido da formação do seu gosto. Não é ‘flat’. E o canto dela com o violão de Carlinhos Sete Cordas é pureza estética.
Sobre Gilberto Gil, como têm sido esses tempos de tratamento de seu amigo? Existe uma grande preocupação rondando sua saúde. Como vem sendo a relação de vocês? Gil canta tanto que não tem medo da morte, mas diz ter medo do ‘ato do morrer’.
Eu adoro essa música, é epicurista. Lindos os versos “Não tenho medo da morte / Mas medo de morrer, sim/ A morte é depois de mim/ Mas quem vai morrer sou eu”. Admiro e, no fundo, tenho uma certa inveja. Porque eu tenho medo da morte. Não estou tão seguro de que estarei presente e consciente no momento de morrer. Tenho medo, em geral, da ideia de não estar presente, de não ser. Tive grande preocupação com Gil quando ele foi hospitalizado pela primeira vez. Depois, vi que, como ele me dizia, o tratamento iria fazê-lo melhorar. Voltei a me preocupar quando ele suspendeu um show que íamos fazer no Rio. Fui à casa dele e me tranquilizei. Ele tinha tido uma reação adversa a um medicamento. Depois, fizemos o show na data remarcada e ele estava maravilhoso.
Nesta semana, você, Gil e Roberto se encontraram para a gravação do especial de Roberto de fim de ano. Depois do episódio do Procure Saber, grupo do qual Roberto saiu de forma ruidosa, será a primeira aparição pública dos três. Vocês voltaram a falar algo sobre o assunto?
Escrevi publicamente a Roberto na altura. E também mandei uma carta privada. Eu sempre soube, e ele sabe, que nosso histórico artístico e nossa amizade estão acima dessas coisas. Agora nos reencontramos com o mesmo carinho de sempre.
O assunto biografias ganhou um fato importante com o lançamento da autobiografia de Rita Lee. Ela se coloca no texto como honesta e impiedosa consigo e com muitos que passaram por sua história. É uma atitude comparável a livros autobiográficos lançados por Keith Richards, Eric Clapton e Rod Stewart. O universo do rock permite ao artista assumir certos erros (Rita diz que não sabe cantar nem tocar) e ‘pecados’ (consumo de drogas e álcool, por exemplo). Não falta aos nomes da MPB se levarem menos a sério e abrirem mais seus corações nas autobiografias?
Não li o livro de Rita Lee, ainda. Vou ler. Quanto ao assunto das biografias, sempre tive posição oposta à dos meus colegas mais próximos. Nunca achei que só devam existir biografias chapa-branca. Disse a meus colegas: o máximo que posso é fazer tudo para não atrapalhar. E procurei entender e explicar as razões e os sentimentos deles. Não li Rita, mas li Clapton: há várias coisas contadas sobre ele (de política a sexo) na biografia não autorizada de Mick Jagger a que Clapton, ele próprio, nem se refere na autobiografia. E você como jornalista deve reconhecer que a campanha pela liberação das biografias foi maculada por vícios sinistros da imprensa. Não creio que os jornalistas não soubessem que minha posição era diferente: eu escrevia coluna no Globo. Mas todos os veículos preferiram pôr meu nome como de defensor da censura. Uma acusação que eu não lançaria nem aos meus colegas que estavam preocupados com a privacidade.
Eu preciso saber de você, cidadão baiano morador do Rio de Janeiro que se alinhou às ideias do candidato a prefeito Marcelo Freixo. Como ficam suas expectativas com o Rio diante no novo prefeito eleito, Marcelo Crivella? Há uma certa depressão coletiva dos que acreditavam que o caminho não era este, uma sensação de que se viverá (com Crivella no Rio, João Doria em São Paulo e Temer em Brasília) um retrocesso de conquistas sociais...
Retrocesso pode haver. Acho que o impeachment já foi um. Fiz a campanha de Freixo até o fim. Ele é uma esquerda fincada no tema dos direitos humanos, enfrentou as milícias e sempre mostrou honestidade inabalável. Mas não penso os lugares-comuns que são difundidos sobre os evangélicos. Li uma pesquisadora dizendo em entrevista à Folha que a teologia da prosperidade da Igreja Universal é estímulo ao consumo e à ostentação. Não sou pesquisador nem acadêmico da universidade, mas sei que isso não é assim. Conheço muitos evangélicos da Universal. Consumismo e ostentação não são o forte deles. O forte é a autoajuda, a geração de respeito próprio, a geração de respeito de grupo, a ajuda mútua. O bispo Macedo pode ter várias mansões e um jato maior do que o de Roberto Marinho (o que eu já constatei de perto), mas a maioria esmagadora dos fiéis é cuidadosa, honesta, organizada e trabalhadora. A expressão “sem preconceito” era forte na campanha de Crivella.
Música pode se tornar algo cansativo? Sente esgotamento em algum momento desse processo (compor, gravar, sair para shows)?
Música é bom e eu gostaria de ter mais talento. Só para aumentar o prazer. Muitas vezes, percebo a imensidão do prazer de Djavan, de Milton, de Guinga. O que cansa é aeroporto, avião, hotel, estrada.
Cansa ser Caetano Veloso?
Não sinto diferença entre ser Caetano Veloso e ser Caetano, ser eu. Cansar de mim? Já tive um período de desgosto profundo de tudo. Durou uns meses. Faz muitos anos. Não quero sentir aquilo nunca mais. Agora, estou certo de que Rita Lee é mais musical e canta com muito mais segurança do que eu.