Filme confirma mito, diz Caetano Veloso
Entrevista para Folha de S.Paulo (23 de abril de 1999)
por Jorge Mautner (especial para a Folha).
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Quando entrei no apartamento de Caetano Veloso, bem em frente à praia de Ipanema, na companhia de Nelson Jacobina, fomos saudados pelas risadas do seu lindo filho caçula, Tom, que corria pela sala.
Em seguida, Caetano começou a falar de Arthur Schopenhauer e seu livro "Mundo como Vontade e Representação", que ele estava lendo. Chamou-nos a atenção para o trecho em que o pensador germânico falava sobre o sexo e no qual ele definia a pederastia e o homossexualismo como doenças e a mulher como total objeto de procriação e portanto um ser inferior.
E, no entanto, em meio a tantas coisas preconceituosas afirmadas pelo filósofo, havia uma espantosa declaração: que a raça branca seria uma anormalidade doentia da espécie humana e que o verdadeiro homem é o de cor marrom e negra.
Caetano Veloso colabora com Cacá Diegues mais uma vez, como já havia feito em "Tieta", ao compor a trilha de "Orfeu", interpretado pelo músico Toni Garrido, que estréia hoje em circuito nacional. Leia trechos da entrevista.
Folha - O que você poderia falar sobre o seu disco misterioso?
Caetano Veloso - Que disco? Não existe nenhum disco misterioso...
Folha - Dizem ser um disco que você gravou e não fala sobre. Talvez um disco com João Gilberto?...
Veloso - Bem, trabalhos com João Gilberto existem. Fui a Buenos Aires e fiz três noites com ele, foi espetacular, mas nós não gravamos algo que dê para disco. Gravamos assim domesticamente para a gente mesmo ouvir. Portanto não há disco nenhum.
O que há é que eu tenho plano de produzir o próximo disco do João. Mas isso depende dele, de como as coisas andarem. Se eu fizer, terá sido o trabalho da minha vida.
Folha - Fale da trilha sonora de "Orfeu" e trace comparações entre este trabalho e o "Orfeu do Carnaval", de Marcel Camus. E também sobre o filme "Central do Brasil", porque li você dizendo que, apesar de ter gostado muito do filme, achava que nele preponderava a outra visão dos estrangeiros sobre o Brasil, isto é, a pobreza uniforme e cinematográfica.
Veloso - Esse texto que você leu no jornal em que eu falo sobre o "Central do Brasil" foi de fato uma compilação feita pelo jornalista de uma entrevista que eu dei pra ele, numa entrevista geral, genérica, não foi um artigo. Se eu parasse para escrever um artigo sobre "Central do Brasil", seria muito diferente. Aquilo são coisas que saíram espontaneamente no meio de uma conversa que envolvia muitas outras coisas. Então você tem que fazer uma ressalva, um desconto.
Agora, sobre o "Orfeu do Carnaval", feito por Marcel Camus, existe um texto meu elaborado, embora não muito completo, no meu livro "Verdade Tropical". Eu conto a história desse filme na minha formação. A reação que tive na época, que foi, como a da maioria dos brasileiros, negativa, porque eu era um adolescente. As platéias brasileiras não gostaram do filme. O filme agradou aos estrangeiros, mas não aos brasileiros.
Agora, eu conto no livro, e aqui posso adiantar um pouco mais essa explicação, que, desde o tropicalismo, a relação interna com esse filme mudou muito. Porque um dos temas do tropicalismo justamente era tentar reproduzir ironicamente, mas procurando participar do entendimento dos motivos, a visão dos estrangeiros sobre o Brasil. Então esse filme é o paradigma da visão dos estrangeiros sobre o Brasil. Não só em si, como o resultado dele é a prova disso.
A reação que nós brasileiros tivemos contra esse filme na época revela a nossa brasilidade. O filme era frustrante do ponto de vista do que a gente esperava de um filme. Enquanto para os estrangeiros foi o contrário, foi a revelação do Brasil por meio do cinema. E sobretudo por causa da música.
Porque aquilo também era o lançamento mundial da bossa nova. Naquilo revelava-se a paisagem do Rio, num idealização de uma população homogeneamente negra, numa favela, e com tratamento musical da bossa nova.
O "Orfeu" é um filme novo de Cacá Diegues no estágio em que ele se encontra. O Cacá de uma certa forma terminou encarnando o cinema novo. Isso não é pouca coisa. Por causa do temperamento mais diplomático, equilibrado, razoável, cheio de bom senso dele, terminou tendo que responder sozinho por tudo que o cinema novo foi, suas conquistas e frustrações.
E o fato é que a geração dele começou a fazer cinema sem saber fazer cinema. É uma gente que tinha muita ambição sociológica, muito amor pelo cinema, mas eles foram se tornando fazedores de filmes na medida em que foram fazendo filmes.
Em "Veja Esta Canção", Cacá demonstrou também que hoje há uma geração de técnicos que fazem os filmes andarem sozinhos. Ele tem grandes filmes, mas em nenhum deles o nível de fatura era assim desenvolvido e desembaraçado como em "Veja Esta Canção". E se viu grandemente confirmado em "Tieta", que para mim é um dos grandes filmes brasileiros.
Eu tenho muitas razões para ser apaixonado por "Tieta", é um dos meus filmes favoritos. Para mim, "Tieta" é um grande passo; não só do Cacá como encarnação, como avatar do cinema novo, mas também um grande passo do cinema brasileiro como um todo.
E "Orfeu" é um filme que já foi feito depois desse passo. "Orfeu", antes de tudo, é uma confirmação do mito de Orfeu ligado ao Brasil, desta vez feita por um brasileiro. E o filme é produzido com uma competência arrasadora.
Então fazer a música para este filme é uma coisa que eu não queria, porque dava muita importância à questão do Orfeu e ao repertório que foi composto para a peça de Vinicius por Tom e Vinicius e para o filme do Marcel Camus por Tom, Vinicius, Luis Bonfá e Antonio Maria, que é um repertório de obras-primas. Achava que eu não deveria mexer nisto.
Acabei como músico contratado, porque o Cacá me pediu, me convenceu. Terminei compondo um samba enredo do qual me orgulho muito e fiquei muito contente de ter feito a canção de amor que em princípio eu tinha me negado a fazer, mas que o Cacá me convenceu a fazer, porque achei que a canção acabou confirmando aquele estilo de canção que Tom e Vinicius compuseram para a peça.