Graeber beat (22/07/2012)

Pensei que ia poder ouvir o “lixo lógico’ de Tom Zé essa semana para poder comentar aqui, mas ainda não tive acesso ao material. Em compensação, li muito mais páginas do “Debt” , de David Graeber, e, embora não seja fácil, vou dar alguma notícia sobre isso. Ler é melhor do que escrever. Graeber é um antropólogo americano que tem sido presença importante nas (e por trás das) manifestações que se chamaram Occupy, começando por Wall Street. Ele é antropólogo, mas em política se alinha com os anarquistas. Eu o conhecia de um artigo muito bom sobre o anarquismo. Mas esse livro agora nasceu de suas reflexões sobre a crise econômica mundial.

Nas páginas de introdução, neguinho já se inclina a considerar justas as reações da esquerda brasileira à presença do FMI na cena de decisões sobre a dívida externa na segunda metade do século 20. Todos os textos contra aquela reação – textos que pareciam sensatos – , publicados por Roberto Campos ou Paulo Francis, parecem merecer as críticas que a esquerda lhes fazia. Bem, Graeber foi ativista daquilo que se apelidou de “movimento antiglobalização”, intervindo em reuniões de cúpula, como o Fórum de Davos. No livro, ele conta como explicou a uma advogada inglesa que o FMI veio aos países do Terceiro Mundo dar receita de austeridade para que uma dívida imoral criada pelos bancos credores (a partir do excesso e depósito feito pelos países produtores de petróleo) fosse paga. Claro, o argumento imbatível era: “quem deve tem de pagar”. Mas Graeber e seus amigos frisavam o fato de que tais dívidas resultavam de indução por parte dos credores a que fizéssemos empréstimos a juros baixos (mais porque eles precisavam emprestar do que nós precisávamos do empréstimo), tendo os juros subido exponencialmente desde que a política monetária americana apertou, no começo dos anos 1980. De todo modo, ele agora escreve para pôr em xeque a afirmação de que “o devedor deve quitar sua dívida”. Em suma, ele diz que a própria economia-padrão não afirma isso. Sem a pressuposição de que emprestar inclui riscos e sem as leis de bancarrota não há economia.

O livro fica mesmo interessante quando ele passa a destruir o mito do escambo. Desde Adam Smith, livros didáticos de economia repetem que o dinheiro foi inventado para resolver os problemas que o escambo não podia enfrentar. Assim, aprendemos que no princípio era o escambo, depois veio o dinheiro e, finalmente, os sistemas de crédito. Graeber diz que o conhecimento antropológico sugere o oposto: começamos com o sistema de crédito – o escambo vem por último. Só se encontra escambo em lugares onde o dinheiro já existia, estando apenas em falta.

Mas o fascínio da exposição cresce quando Graeber retoma textos védicos em que a ideia de dívida como sendo básica da condição humana aparece nos sacrifícios aos deuses. Os deuses e Deus às vezes parecem representar a “sociedade”, a quem cada um de nós como indivíduo deve tudo o que é, o que tem e o que sabe. A ideia de “sociedade” é discutida pelo autor com grande força de exigência intelectual. Assim, um texto hindu que se refere na dívida “aos pais”, “aos ancestrais” e, finalmente, “ao homem”, dá conta daquilo que ao longo de milênios tantas culturas chamaram de “culpa”, "pecado”, “dívida” básica com a qual vimos ao mundo.

Eu sei que é complicado e não tenho organização suficiente para fazer uma sinopse do que li. Inclusive – e sobretudo – porque ainda não o li inteiro. O que me interessa é transmitir a força sugestiva que a leitura inicial me exibiu. Trata-se de uma reflexão ousada, como pede o momento atual do mundo. Em períodos de grandes viradas, as ideias são convidadas a ir fundo de si mesmas. Alguns pensadores estão dispostos a atender ao chamado. Graeber surge como uma voz radical no ambiente americano. Vendo a história do mundo como uma em que o aspecto aparentemente mais novo e mais abstrato da vida econômica tem sido, na verdade, seu fundamento e sua forma primeira, ele vira pelo avesso os saberes a respeito da economia.

Escrevo essas palavras, sem tempo de reler trechos do livro de Graeber, enquanto me preparo para ir assistir à “Na Estrada”, de Walter Salles. Estou cheio de curiosidade. Acho que é o segundo filme americano de Waltinho. Não vi o outro, da água negra. Mas esse agora tem o excitante de ser baseado no livro de Kerouac. Bob Dylan, em sua autobiografia, diz que o romance (será que se pode chamá-lo assim?) foi (é) para ele “uma Bíblia”. Já Truman Capote saiu-se com a genial tirada “Isso não é literatura, é datilografia”. Devo confessar que nunca consegui ler todo. Acho que sou um estranho ser em minha geração. A opinião de Dylan ecoa tudo o que venho lendo e ouvindo sobre esse livro desde a adolescência. Prometo-me que o lerei agora, depois de ver o filme. Adoro Dylan e gosto de Allen Ginsberg. Sou louco por Jorge Mautner. Sei que não haveria figuras como Graeber nos EUA não fosse pelos beats dos anos 1950. Mas meu romance americano é "O Grande Gatsby”. Ou então Gertrude Stein (“Melanctha” é um conto obra-prima – e a autobiografia de Alice B. Toklas é deliciosamente bem escrita, sendo que “Ida” não é nada mau). Mas cresci lendo mais autores europeus do que americanos (li Hemingway e admiro, mas não sou o maior fã: prefiro as frases longas de Faulkner): Thomas Mann, Dostoiéski, Proust, Stendhal, Balzac, Joyce (por sinal há nova tradução do “Ulysses”, a melhor).

Caetano Veloso.

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