HD (26/06/2011)

Às vezes me parece que quando a gente vai ficando velho deve deixar de ler livros novos: a memória e a capacidade de concentração já não são as mesmas - e os romances, poemas ou ensaios não calam tão fundo na alma de um sexagenário como na de um adolescente. Mesmo as canções têm considerável menor pregnância para um ancião do que para um menino. Bem, eu nem devia falar em menino: é óbvio o quanto as canções que aprendemos na infância atingem uma grandeza dentro de nós inalcançável pelas que ouvimos na maturidade. E tudo o mais. Fico fascinado pelo valor que certos seriados de TV têm para alguns amigos meus que estão, por exemplo, nos seus 40 anos. Mas, como sou um velhinho transviado, entranho igualmente a resistência que contemporâneos meus mostram a ler, ver e ouvir lançamentos.

Por que ler um romance de Adam Thirlwell inteirinho só por causa de um conto de Antonia Pellegrino que meu filho achou num livro coletivo? Por que ver um clipe de Devendra em ver de me agarrar a Ella cantando Cole? Tudo isso só pode sobrecarregar meu HD.

Tenho pena de não ter podido escrever o release para uma coletânea de Rogério Skylab, como ele me pediu. Mas valeu, pois ele ficou instigado a apontar que faço "contorcionismos" para me manter em dia com as modas. Para que ouvir Artic Monkeys? (Cito justo esse grupo porque, embora incensado logo que surgiu, ele passou a ser tratado como algo irrelevante, tendo Ana Garcia me dito - com eco de seus jovens amigos do Recife - que bom mesmo é Arcade Fire: eu desde logo gostei do Artic Monkeys e não do Arcade Fire, o que é que eu posso fazer?) Entre as coisas do Skylab tinha o DVD de um show no Circo Voador por que eu fiquei apaixonado. Vi 500 vezes e mostrei a todas as pessoas que passavam perto do meu quarto (em minha casa só tem televisão no quarto, o que me disseram que pode ser problemático: comecei a me preocupar). Adoro ver o jeito como ele dá aquelas andadas ao redor do palco. Algumas das canções - que põem escatologia em contextos inquietantes, o que resulta em força poética - eu já conhecia. Outras foram uma revelação. Ouvi Artic Monkeys por puro prazer. Vi e revi esse DVD do Skylab pela mesma razão. Mas não decoro as melodias nem as letras. Aos 17 anos eu decorava tudo. Aos 10, decorava sem saber sequer que tinha aprendido. Faz pouco tempo, cantei inteirinha uma música que tenho certeza de nunca ter cantado antes: apenas a ouvi muito em Santo Amaro. A fórmula: "Ivan Lins é música, Nirvana é lixo" + ""Nevermind" é um dos discos que mais amei na vida" = "ninguém me amarra". 

Eu queria ao mesmo tempo relembrar aos amnésicos que rock era lixo quando eu me interessei por ele, e que Ivan (o maravilhoso Ivan de "Começar de novo" e "Dinorá") é um cara que domina as entranhas harmônicas e rítmicas da música difícil que era respeitável quando ele começou a tocar e compor. Mas  é igualmente verdade que foi contra o critério de avaliação que fazia com que a música de intrincada elaboração harmônica fosse respeitada que o tropicalismo se insurgiu. Eu. Contra a passeata contra as guitarras elétricas. Nara Leão. Eis uma personalidade sobre quem eu gostaria de escrever um livro de 400 páginas. Nara era contra como eu. Gil também era contra, mas entrou porque aquilo era o começo do trabalho para a série de programas que Paulinho Machado de Carvalho planejava para resolver o pepino de a "Jovem Guarda" ter audiência crescente e o "Fino" estar caindo. O que aprendi então a amar no rock arde em estado puro no "Nevermind" do Nirvana.

Tudo isso porque estou gostando do novo livro de Zizek. Eu o acho um irresponsável que gosta do Terror e da Revolução Cultural e da Revolução de Outubro. Tudo bem dizer coisas provocativas num mundo onde parece que o capitalismo liberal das democracias do Ocidente é a realização do sonho humano. E Zizek é uma potência mental impressionante: ele comenta Panda Bear, Hegel, Thomas Frank ou as últimas decisões dos governos americano, europeus e norte-coreano com velocidade e pertinência. Muito mental demais, diria Zé Agrippino. Mas a verdade é que a crise da economia global é uma crise do capitalismo que deveria ter feito a esquerda pensar pra valer. Zizek parece responder sozinho a esse estímulo. Ele cita Badiou, mas nunca consigo concordar com nada do que diz Badiou. Discordo de Zizek, mas ele é mais inteligente.

No meio-tempo, Dilma recua de ter recuado da decisão de acabar com o sigilo eterno. Boa. E Cabral não superou a gafe com os bombeiros. E Obama quer sair do Afeganistão. E Veríssimo adorou o disco da Salmaso: vou comprar logo (só de imaginá-la cantando "Derradeira primavera" já fico emocionado). A Marcha para Jesus em Sampa virou protesto contra união gay. Eis Marina Tsvetáieva: 

"Amar apenas mulheres (para uma mulher) ou amar apenas homens (para um homem), excluindo de modo notório o habitual inverso - que horror!/ Amar apenas mulheres (para um homem) ou amar apenas homens (para uma mulher), excluindo de modo notório o que é inabitual - que tédio!/ E tudo junto - que miséria./ Aqui esta exclamação encontra realmente seu lugar: sejam semelhantes aos deuses!/ Qualquer exclusão notória - um horror!"

Faixas dos três primeiros LPs de João Gilberto voltam a tocar na MPB e na Roquette. Há edição inglesa, em CD, daqueles discos. Ouvir João no rádio limpa completamente o HD. 

Caetano Veloso.

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