Heavy Metal (04/11/2012)
Acho que foi nos anos 80 que escrevi uma música chamada “Purificar o Subaé”, deplorando o estado em que a Cobrac (Companhia Brasileira de Chumbo) e a Peñarroya (empresa francesa) deixaram Santo Amaro. Tinha sido Violeta Arraes Gervaiseau a me alertar para o crime ambiental em minha cidade. Eu conhecia aspectos bem vívidos da história, mas tinha saído de lá exatamente no ano em que a “fábrica de chumbo” se inaugurou. O descalabro passou pelo governo militar e ACM, embora tudo tenha começado em 1960. Me lembro de, já depois da volta de Londres, ver os campos torrados perto da fábrica. Depois ouvi que o gado morria em toda a volta. Mais doloroso, tive um grande amigo que, tendo trabalhado na empresa, ficou doente e veio a morrer ainda bastante jovem. (Trata-se de Dasinho, que pode ser visto no filme “O cinema falado” conversando sobre Fellini e dançando no adro da igreja.) Em minha canção, eu lamentava que se matassem “os meninos e os peixes do rio” (os mesmos da Clarice de Capinam?), e bradava: “mandar os malditos embora”. Mas não voltei a Santo Amaro para tratar disso, não emprestei minhas energias à luta direta contra esse horror.
Sempre faço públicas as minhas escolhas eleitorais. Em alguns casos entro em campanhas: por Waldir Pires contra ACM; por Mangabeira contra a mesmice; por Marina contra a brutalidade; por Freixo contra todos esses males juntos. Orgulho-me de ter feito o mesmo por Gabeira, o parlamentar que, já em 2002, levou o escândalo ambiental de Santo Amaro para o Congresso. Freixo e Marina, no entanto, têm algo que me faz vê-los de forma enaltecedora: ao contrário de mim, eles construíram suas atividades políticas a partir do imediatamente vivido desde a infância. Freixo, então, que age na região onde eu próprio tenho vivido a maioria dos meus anos, me impressiona pela objetividade da visão sobre o que lhe está próximo.
Uma das coisas que mais gritam nessa história santamarense é a ignorância. Eu mesmo não tinha noção do que estava se passando. Revolta saber que é claro que os donos e técnicos dessas empresas sabiam de tudo. E também as autoridades responsáveis. Li um blogueiro esquerdinha se queixando de minha mãe nada ter dito a respeito. “A classe média”, diz ele, “se sente incomodada em falar da contaminação da cidade pois isso atrapalha o turismo religioso”. Meu pai morreu sem ter uma noção precisa do que acontecia. A preocupação era grave mas vaga, sem apoio em informações públicas. Prefeitos usaram escória para pavimentação. E os religiosos que veneram Nossa Senhora não são agentes turísticos. Esse ódio século XIX à “classe média” é um atraso da mentalidade “de esquerda”. Gosto de Mangabeira, entre outras coisas, porque ele não tem o menor respeito por essa estreiteza de visão. Universitários de esquerda (quase todos da classe média) adoram ouvir professores marxistas xingarem a classe média. Eu acho ridículo. O fato é que, se minha mãe, meu pai e eu tivéssemos sido mais classe média, ou seja, menos tabaréus e mais informados a respeito de temas bioquímicos, nossa reação não teria se resumido a meu samba desesperado. Não deixa de me doer que alguém queira, ainda por cima, agredir senhoras de mais de cem anos de idade que nada fizeram além de sobreviver à toxidade dos mariscos contaminados que comeram por metade da vida.
Mas eu sabia de tudo. E disse. Não fosse minha fraqueza mental depois de sair da cadeia, eu teria explicitado minha divergência com Rogério Duprat quanto ao tratamento dado à gravação de “Acrilírico” no disco que saiu em 69 (capa branca, assinatura). Duprat, querendo ser transgressor demais, “desconstruiu” o que poderia ficar “parecendo um texto pretensioso”. E enterrou o poema em falas amadorísticas e ruídos (sua locução é a mais amadora mas a orquestra soa profissional e pretensiosa). Eu teria sobretudo enfrentado o grilo que Rogério Duarte me vendeu, aconselhado por André Midani, a respeito do final do texto: “Acrílico Santo Amargo da Putrificação”. Purificação era o nome da minha cidade e de sua padroeira: o trocadilho poderia ser-me funesto. Acedi. Mas depois que voltei ao Brasil, respondendo a Augusto de Campos, que sempre gostou da forma original e também teria preferido ouvir o texto dito com integridade, reafirmei a forma original. Dizer “Santo Amargo da Putrificação” tinha o que era intuído no vivido. E, como resposta poética a uma situação degradante, só pode alegrar a Nossa Senhora da Purificação. Minha política não tem força nem valor: não enfrentei o mal na minha raiz. Mas ao menos meu escrito denunciou a essência do mal lá. Santo Amaro é a cidade mais poluída por metais pesados do mundo.
Caetano Veloso.
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