João Gilberto (05/06/2011)
Era dele mesmo que Bob Dylan falava na contracapa do “Bringing it all back home”, como eu supus desde o início. Era ele que tinha feito surgir na frase seguinte a palavra “perfection”. A prova está na autobiografia que leva o título aparentemente humilde de “Crônicas”. Dylan conta que ele (assim como toda a turma legal e culta do Village) ouvia (e se identificava com) os bossanovistas brasileiros. Claro que, sendo Dylan, ele não poria o nome de Jobim na sua minilista: óbvio demais, orquestral demais, falado demais. Em vez disso, citou Carlos Lyra e Roberto Menescal. Mas João Gilberto, por mais óbvio que fosse, ele não deixaria de mencionar: João está obviamente além do óbvio, é um medalhão rebelde, um clássico sem teto, um perfeccionista dos desacertos. Todos os músicos da minha geração no Brasil falam de João. Fora do Brasil, bastaria Dylan. Mas João já era o cara que soava bem “até lendo jornal”, para Miles Davis. O cantor que ensinou a Jon Hendricks sobre cantar como só Louis Armstrong tinha feito antes. Quanto a mim, João me ensinou tudo. Sobretudo me deu uma ideia forte de destinação do Brasil, de tarefa dos brasileiros, de missão da língua portuguesa. Todos os meus sonhos que parecem malucos quando afloram aqui ganharam substância à audição do disco “Chega de saudade”, em 1959, em Santo Amaro.
Não preciso contar de novo. O bar de Bubu; meu colega que tinha me dito que, já que eu gostava de coisas loucas, tinha de ouvir esse novo cantor que era totalmente desafinado, indo para um lado quando a orquestra ia para o outro; a sensação de descoberta de um mundo. Tudo já é folclore. Tudo já é “Verdade tropical” (livro de título aparentemente imodesto). Talvez importe dizer que, ao ler no livro de Ruy Castro sobre a bossa nova que João desentranhou o “Desafinado” da condição de piada feita para ser veículo do afrancesado Ivon Curi (e, ao mesmo tempo, uma possível gozação com o estilo vocal do cantor), transformando a canção numa obra-prima de lirismo sobre as questões profundas do canto como atividade, pensei em quão programaticamente conscientizador foi e é o gênio de João Gilberto. Que ele tenha sido o responsável pelo interesse de Sérgio Ricardo pelo marxismo, pelo interesse dos Novos Baianos por sambas e choros antigos, pelo meu próprio interesse por Orlando Silva! João! Quando Gal fazia “Fa-tal” no Teatro Tereza Rachel, ele foi assistir, meio escondido. Ao final, disse logo a ela que tinha gostado mais “da parte rock’n’roll”. Que homem é esse? Será a Bahia? Será o Espírito Santo? Como tentar se acercar do que significa a energia histórica que estimula a mente de um João Gilberto? A energia afetiva, a energia intelectual de um João assim? Ele foi e é o maior deslumbramento da minha vida.
Que esforço podemos fazer para descer à Terra e pensar sobre os fatos pedestres que o circundam? O artigo de João Máximo, inocentemente descobrindo o 78 rotações que João lançou (para o quase anonimato) no começo dos anos 1950, reduzindo tudo o que João fez a um mero reflexo da descoberta do estilo de Chet Baker. O simpático mas incompetente biógrafo americano de Chet (que encontrei casualmente na Concha Acústica do Castro Alves no show da Mart’nália) dizendo que, enquanto o trompetista era desancado por críticos e colegas nos Estados Unidos por suas gravações vocais, seu fã brasileiro, João Gilberto, o imitava o tempo todo em casas noturnas italianas. Lobão chiando porque João não canta “mágica no absurdo” (nesse caso Lobão tem razão — em parte: “Nem sempre se vê mágica no absurdo” é frase de gênio, e eu nunca a evitaria, mas João dá a “Me chama” a mágica que a canção não sabia dizer que tinha: ouvi queixa semelhante de Herivelto Martins, por João cortar trechos de “Ave-Maria no morro”, mas Herivelto era um dos grandes amores de João, o que não é o caso de Lobão mesmo). O show no Municipal com o som propositadamente baixo demais (e o violão desafinado) — o que fez com que meus dois filhos adolescentes não pudessem ter ideia clara sobre o que é que me empolga quando falo sobre João. A ausência até hoje das prateleiras de CD (coisa que já está em adiantada fase de desaparecimento) dos três primeiros álbuns dele (a “Veja” disse que ele tem razão contra a gravadora — e eu mesmo escrevi parecer reprovando a masterização de que João não gosta —, mas a algum acordo já se teria de ter chegado, de modo a que tivéssemos os discos mais importantes da história de nossa música à disposição de quem quer e precisa ouvir). Nada pode competir com a cegante luz que se instaura quando se ouve “Pra que discutir com madame?” cantada por ele. Ou “A primeira vez”. Ou “Maria ninguém”. Simplesmente nada pode competir com o fato bruto da obra genial que é cada vez que João escolhe um samba (mesmo que não seja samba) e o traduz para a linguagem do seu violão inimitável, do seu canto que explica e justifica a existência do canto.
João cantando ainda bastante como Orlando Silva (mas já com a suavidade maior do que a do outro orlandista, o Roberto, Silva também) é algo que eu mesmo perguntei a João se não já seria tempo de incluir na parte oficial de sua discografia. Ele me respondeu sorrindo (e contando histórias sobre músicos que tocaram na gravação, completando com ternura frases das canções do disco que eu cantarolava) com outra pergunta: “Será, Caetas?” E logo começou o trabalho de fazer sumirem os três LPs iniciais. Mistério. Maravilha.
Caetano Veloso.
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