Lei seca (06/11/2011)

Os americanos só se referem ao período em que as bebidas alcoólicas foram para a ilegalidade como “prohibition”. Aqui em Portugal, como aí no Brasil, dizemos “lei seca”, não sei se graças à criatividade dos lusófonos ou se o traduzimos de algum outro idioma falado por gente mais imaginativa. Nunca vi “dry law” em inglês. Era a proibição em si que o malfadado veto ao álcool representava. Malfadado porque logo se fez óbvio que criminalizar as bebidas alcoólicas só serviu para aumentar a excitação relativa a seu uso e para criar uma economia paralela em que gângsteres famosos pontificavam, o que serve como forte argumento contra a ilegalidade de qualquer droga. Mas hoje em dia, no Rio, como no Brasil todo, a expressão “lei seca” já só evoca a bem-vinda campanha para inibir o uso de álcool por motoristas. Digo que ela é bem-vinda porque, embora não seja grande entusiasta de proibições, sempre achei que a violência que representa a presença de veículos pesados e velozes por entre os habitantes das cidades deve ser tratada como tal. É muito triste e feio e injusto que alguém morra porque um automóvel subiu na calçada. É tétrico que coisas assim se deem sem que haja uma reação firme da sociedade. A instituição da “lei seca” é uma firme reação social a algo que não nos exige nada de menos.

Estou em Lisboa e não tive tempo de verificar todos os detalhes envolvidos no caso que me aconteceu no Rio às vésperas de minha viagem. Correndo entre um show e outro, tentei buscar informação precisa na internet, pois alguns conhecidos me disseram que, se você se recusa a soprar o bafômetro (direito legítimo: o cidadão não é obrigado a produzir provas contra si), sua carteira será suspensa por uma semana e você pagará uma multa de quase mil reais. Seu carro poderá voltar para casa com você, só que dirigido por alguém que, com zero álcool no organismo, venha em seu socorro. Para quem pode pagar uma multa dessas, é pequeno incômodo. Mas e quem fez o teste e passou, limpíssimo? Bem, aí vem a questão de se o carro está com toda a papelada em dia (não simplesmente se o carro está obviamente em condições de trafegar).

O que aconteceu comigo foi que meu filho Zeca me pediu uma carona de nossa casa no Leblon até o Jardim Botânico. Apenas dobrei a esquina e entrei na Bartolomeu Mitre, meu filho me fez parar no posto de gasolina que fica ali, pois ele precisava comprar algo para levar para a namorada (não era bebida alcoólica). A barraquinha e a já familiar bola branca suspensa no ar (que a Gadú e eu brincamos que é o cenário do nosso show) estavam na esquina da Praça Antero de Quental. Acho que um dos fiscais, ao me ver parado ali por algum tempo e, com ter entrado no posto, evitar a Bartolomeu Mitre e seguir pela San Martin (sim, porque se Ipanema é da Bahia e de seus heróis da independência, o Leblon é dos países que foram nossos hermanos na Guerra do Paraguai), julgou tratar-se de um motorista alcoolizado querendo driblar a revista. Digo isso porque, mal pus o carro em movimento, ainda dentro do posto, ele veio de lá acenando para eu parar junto ao meio-fio da praça. Fi-lo fagueiro, já que faz uns 25 anos que não bebo. Achei que valia o incômodo: a causa era nobre.

Mas eis que ele tomou minha carteira de habilitação e pediu os documentos do carro. Eu não tinha ideia precisa de onde estes estariam nem do que exatamente seriam. Abri o porta-luvas e achei uma bolsa marrom cheia de papéis e folhetos. Abri e, diante do incompreensível, pedi ajuda à autoridade. Ele saiu correndo para tratar de outro caso, levando minha carteira na mão e me deixando com a bolsa e o mistério. Veio um companheiro seu e me informou que o papel que eu devia estar procurando era “verdinho”, e que ele era o chefe da operação. Tomou de minha mão o papel verde e correu para o complexo tenda-bola. Demorou tanto que comecei a perguntar ao primeiro. Que olhou para a placa do meu carro e disse “5. Se não estiver agendado até final de setembro vai ser recolhido”. 5?! “Sim, placa com final 5”. Quer dizer que há risco de que prendam meu carro? “Acho melhor você ir ver lá”, apontando para a bola. Fiquei nervoso. Meu filho se manteve calmo. Fui lá tentar perguntar. Parece que, ao me ver, tiveram a ideia de me aplicar o teste do bafômetro. Mas não o fizeram de imediato. Ainda havia outros na fila. O meu deu zero-zero. Me informaram que meu carro seria “recolhido” porque “o agendamento da vistoria para carros com placa de final 5” tinha prazo encerrado em 30 de setembro. Fiquei irado. Já me tinham dito que no Rio é assim: grande campanha para ver se há motoristas embriagados e muitos que provam que não estão sendo punidos por detalhes burocráticos que parecem cavados pelos agentes na hora. Não cri. Uma amiga me diz que mesmo que o teste prove presença de álcool no organismo, a pessoa não passa por vexames maiores do que esse.

Gritei que me parecia contraproducente para a campanha que tão grande transtorno se abatesse sobre um abstêmio. Que em Lisboa o teste é feito à janela do carro, sem que outros problemas sejam buscados. Que dizem que em São Paulo também. Mas ele me ensinou que não agendar a vistoria no prazo é uma infração e, uma vez flagrada uma infração, não se pode não punir o infrator. Perfeito. Ele só se dirigia a meu filho. Mandou eu me queixar pela imprensa. É o que estou fazendo aqui, embora não tenha tido tempo de estudar direito o caso. Sou pela Lei Seca e contra Alexandre Felipe.

Caetano Veloso.

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