Memória (11/12/2011)

Estou em Buenos Aires, aonde vim para fazer algo (não está muito claro para mim o quê) no Parque de la Memoria. Sei que trataremos, num pequeno filme feito pela instituição e numa entrevista fechada que darei a um interlocutor escolhido por eles, da questão da memória dos desmandos dos governos não democráticos que tivemos que suportar no que ainda não sabíamos que era o começo dos estertores da Guerra Fria. O que mais me vem à cabeça, enquanto passo por essas enormes e larguíssimas avenidas portenhas (que parecem hipertrofias da ideia que temos de Paris), é o tema da diferença de atitude entre brasileiros e argentinos quanto à questão em pauta. Não longe do dia em que Dilma sancionou a lei que institui a Comissão da Verdade — e que ainda não se sabe quem comporá tal comissão —, torna-se mais dramática a pergunta sobre essa diferença.

Antes do governo Fernando Henrique Cardoso, o Estado brasileiro não tinha atendido aos reclamos dos parentes de mortos e desaparecidos durante o regime militar. Depois disso, aprendemos que contam cerca de pouco mais de 400 os que sumiram nas mãos dos carrascos da nossa tentativa de Estado policial. Na Argentina foram cerca de 30 mil. O uso da palavra “ditabranda” pela “Folha de S. Paulo” em editorial provocou revolta em comentaristas de esquerda. Com razão, se pensarmos que o assunto não admite tiradas de humor. Mas não era infundada a observação. Há grande diferença de grau entre a brutalidade do que ocorreu no Brasil e do que ocorreu na Argentina (ou no Chile). Aparecem aqui as tradicionais visões que dão conta de um Brasil em que não se derramou sangue nem para a independência (esquecem-se da Bahia e de outros detalhes mais para o Nordeste) nem na proclamação da República. Tampouco a nossa tardia abolição da escravatura foi parte ou motor de uma guerra civil. A doçura brasileira ressurge como feição da nossa nacionalidade. A mesma doçura que encabeça um artigo comovente de Roberto Mangabeira Unger (onde ele diz que a energia do país se expressa numa doçura que ele levou muitos anos para atingir), autor que, no entanto, aponta para o risco da “sentimentalização das relações desiguais”. Lendo partes do livro de Fredera sobre Tenório Júnior — e lendo o que os dirigentes do Parque argentino têm documentado sobre o caso desse grande pianista brasileiro —, choca a visão dos intestinos da participação do Brasil na Operação Condor, em que os governos autoritários de Chile, Argentina, Brasil e Uruguai se uniam na perseguição de suspeitos, não raro levando-os à morte por tortura — como foi o caso de Tenório, meu amigo, com quem eu imaginava tentar uma colaboração musical pretensiosa.

O Brasil é um país da América para onde a rainha da metrópole europeia veio seguindo seu filho, o príncipe regente (já que ela própria estava louca), D. João VI. Esse monarca parece que voltou a Portugal sem vontade de deixar o Brasil, não sem antes pedir ao filho que pusesse a coroa sobre a cabeça. Esse mesmo imperador, português de nascimento e posteriormente disputando a coroa portuguesa, fez a independência da colônia. Todas essas histórias curiosas que sabemos e não sabemos (já que nos ensinam bravatas superficiais apenas para nos ensinarem a rir delas quando chegamos à puberdade — ou pelo menos foi assim na minha geração, sendo que depois parece que rir de tudo o que se passou veio a ser a regra desde o ensino fundamental) nos dão uma imagem sem contornos nítidos, uma bruma de história, uma interrogação vaga sobre o que somos. O contraste com as certezas dos heroísmos argentinos é gritante. Quem está em maior desvantagem?

Bem, por um lado, a glorificação de personalidades populistas tem mais probabilidade de se afirmar na Argentina. Getúlio não é para o Brasil o que Perón segue sendo para os argentinos. Mesmo Lula não cria as paixões geradoras de divisão de grupos que se opõem como Kirchner e, depois dele, sua viúva, Cristina.

Seja como for — e sem querer entrar na parte que mais interessa a meu filho menor, a saber, se Maradona é maior do que Pelé (meu filho acha que sim) ou se Messi é insuperável na atualidade — temos muito o que aprender com os argentinos. Claro que também eles conosco. Isso sem citar as relações gerais entre o gigante que é a América Portuguesa e todos seus outros vizinhos hispanos. O tango invadiu o Brasil via Rio de Janeiro nos anos 1930, 40 e 50 — e a “gíria tradicional carioca” é toda portenha. Hoje muitos argentinos amigos meus se queixam de que a música popular brasileira moderna seja conhecida entre eles, enquanto nós quase nada conhecemos da música argentina pós-tango. Amo os tangos e sempre me impressiona a civilidade urbanística de Buenos Aires, que deixa o Brasil e suas cidades com um aspecto selvagem e desordenado. A elegância dos prédios, a harmonia das formas, a sensação de uma Europa agigantada pelos espaços da América. Seja como for, nós brasileiros precisamos definir nossas posições face ao problema das vítimas da ditadura. Os argentinos, em que pesem as diferenças históricas e estatísticas, podem nos ensinar muito. Vou ao Parque de la Memoria agora. Agora mesmo: escrevo correndo pois o carro já me espera na porta do hotel. Passarei pelas ruas largas e harmônicas e verei pessoas europeizadas. Eu me lembrarei de nossa selva selvagem e doce. Mas aqui tenho que obedecer à pontualidade. Depois conto sobre o parque e o que pensei dos assuntos discutidos.

Caetano Veloso.

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