Momentos de glória (14/08/2011)
Quem poderá lembrar com nitidez? Eu, sim. Ao menos algumas imagens. Mas certas informações que orientariam o leitor só poderiam surgir como resultado de pesquisa - coisa que não fiz nem para escrever "Verdade tropical". O mero pensamento de que Guilherme Araújo já morreu produz imediatamente a sensação de que ninguém poderá me ajudar a reconstituir o fato que quero narrar. Mas talvez a banda que tocava comigo fosse composta dos baianos Perinho e Moacir Albuquerque, Tuzé de Abreu, Enéas Costa e Bira. E, quem sabe, Amin Kader pode ter sido o meu assistente nessa temporada. Tudo me veio à mente quando participei, na Sala São Paulo, do show dos 40 anos de carreira de Chitãozinho e Xororó. A uma certa altura, a dupla cantou "Tenho ciúme de tudo".
Há um travesti chamado Ditinha bem vivo em minha memória, e, por isso, tendo a pensar que foi Ditinha quem protagonizou a cena que preciso descrever. Mas não me sinto seguro de que tenha sido mesmo ela, pois ouço com clareza a voz de Waly repetindo seu nome - e não me parece que Waly estivesse envolvido na produção desse show. É possível que, mesmo não participando da produção, ele tivesse passado uns dias em São Paulo e assistido ao show em que Ditinha entrava no palco? É. Me parece que assim foi? Não. Devo perguntar a Amin, a Perinho, a Tuzé. No entanto, quero escrever agora, no calor da recordação. Telefonar para um deles (só tenho o telefone de Tuzé) quebraria mais o ritmo do meu texto do que contar aqui que há o risco de isso acontecer. Será que faltarão coisas cruciais: o nome do teatro, o título do show, o nome do hotel, o ano exato?
De repente, Regina Casé lembrou aqui o nome do teatro sob o Minhocão: Teatro das Nações. No hotel, que não ficava longe, passei uma noite inteira conversando com Nelson Cavaquinho, que veio ao meu quarto, cantou, chorou - e repetiu muitas vezes em voz baixa o seu grande segredo: a fé em Deus. Esse foi um momento de glória. O outro, que quero narrar, me veio à memória quando ouvi Xoxoró e Chitão cantarem o bolero que foi sucesso de Orlando Dias. Eu estava na plateia da Sala São Paulo, considerando a importância dessa dupla campineira em nossa história. Também lamentando que me tenham dito, na época do show "A foreign sound", que este deixara de ser gravado em DVD porque o então diretor da Osesp se opunha à apresentação de música popular ali. Nunca averiguei - e não creio que ele estivesse errado. Só sei que o projeto "A foreign sound" teria evidenciado sua significação se o que foi feito no palco, com orquestra sob Jaques Morelenbaum, tivesse sido registrado e distribuído mundialmente. Não rolou. Acho que era o carma do Brasil: uma mirada pretenciosa sobre o cancioneiro americano esboçada por um brasileiro ainda não podia ser reconhecida com respeito pela percepção global. O site Pitchfork dedicou uma crítica inacreditavelmente inteligente ao disco, mas este não tem presença no imaginário internacional. Se o DVD do show tivesse sido feito, tudo podia ganhar algum sentido. Mas não era hora. E o disco talvez não mereça nem mesmo a atenção que o Pitchfork lhe deu. De todo jeito, eu era levado a pensar na ironia de estar ali para cantar na gravação de um DVD de música tão popular. E de uma vertente pela qual torci muito quando ela ainda era desprezada pelas plateias do culturalmente dominante litoral.
"Tenho ciúme de tudo" levou meus pensamentos a uma voragem. Esse bolero era o exemplo mais espalhafatoso do fenômeno de massas Orlando Dias. Dias rasgava o próprio paletó, gritava "Obrigado, minhas fãs", ajoelhava-se. Era o culto a Orlando Silva exibindo consequência no polo oposto a João Gilberto. Dias ficou famoso no início dos anos 1960, mas nos 70, quando voltei de Londres, ele brilhava ainda, com os LPs "Obrigado minhas fãs", 1 e 2. "Tenho ciúme de tudo", desde o título, não é uma canção moderada. No nosso ambiente, ríamos de Orlando - e eu achava que não tinha ciúme de nada. Decidi cantar justo esse bolero - e como último número do meu show da temporada. Tendo encontrado Ditinha, propus-lhe que entrasse no palco toda noite para o número final. Eu cantava para ela.
Não lembro exatamente como era a roupa de Ditinha. Mas estou certo de que não era uma roupa do dia a dia de uma mulher. Era roupa de palco - e havia plumas. A letra do bolero dizia:
"Tu és a criatura mais linda que os meus olhos já viram/ Tu tens a boca mais linda que a minha boca beijou/ São meus os teus lábios, esses lábios que os meus desejos mataram/ São minhas tuas mãos, essas mãos que as minhas mãos afagaram/ Sou louco por ti, eu sofro por ti, te amo em segredo/ Adoro teu corpo divino/ Pela mão do destino a mim tu viestes (sic)/ Tenho ciúme do sol, do luar, do mar/ Tenho ciúme de tudo".
E aqui eu me ajoelhava aos pés da traveca preta e, abrindo os braços, cantava os versos finais:
"Tenho ciúme até/ Da roupa que tu vestes".
Glória não por reiterar gesto tropicalista, em que se pretendia ir às vísceras da nacionalidade. Mas por evento tão complexo dentro do repertório ter se dado num teatro pequeno, que nem sequer ficava cheio, tendo permanecido obscuro e tão maliciosamente secreto quanto a confissão de fé em Deus feita por Nelson Cavaquinho. Por que lembrar isso quando leio Roubini sobre a crise global e as profecias de Marx e assisto aos vídeos de Mangabeira propondo tarefas para superá-las?
Caetano Veloso.
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