MPB (11/11/2012)
Eu nunca tinha visto neve em Nova York. Desta vez as enormes planícies do aeroporto estavam brancas. Pequenos tratores empurravam montes altos de gelo para longe do caminho do avião. Já era de manhã mas ainda era noite. O branco da neve era igual ao das areias do Abaeté e arredores — onde, aliás, fica o aeroporto de Salvador (cujo nome é um problema que não quero retomar agora). Uma vez uma senhora republicana do Sul dos Estados Unidos (que xingava Fidel Castro e insistia em que a pronúncia correta de Reagan — seu então querido presidente — era Rígan e não Rêigan, como toda gente dizia) decolou do ex-Dois de Julho ao meu lado e comentou (não sei como ela ficou sabendo que eu falava algum inglês): “Parece neve.” Muitas dessas dunas estão extintas: anos e anos de caminhões carregando areia para a construção civil. Por falar em caminhão: o “acordo” ortográfico não tem nada a ver com “caminhão” e “camião”? Por que e porquê?
Seja como for, Bagno gosta exatamente do que eu não gosto no acordo (as supostas facilitações) e despreza o que eu amo (a ideia da unidade do mundo de fala lusitana). Adoro que falemos português. E gostaria que portugueses, brasileiros, angolanos e moçambicanos (e quem mais chegar: goanos? timorenses?) nos entendêssemos mais. Já é muito que os portugueses vejam novelas brasileiras e ouçam canções nossas. Mas eu queria que houvesse grupos de pagode no Porto, bandas de axé em Coimbra, baile funk em Lisboa. E que os portugueses fossem entendidos por brasileiros como só acontecia quando Saramago aparecia na televisão.
Vejo os portugueses legendados no programa “Música Portuguesa Brasileira” do Canal Brasil. E de fato, muitas vezes preciso ler as legendas. Espero que esses subtítulos copiem o que dizem e cantam os lusos. Já vi um filme português (de Manoel de Oliveira) em que as legendas usavam expressões brasileiras para “traduzir” o que estava sendo dito, o que causava confusão, pois ouvíamos uma coisa e líamos outra totalmente diferente. Não quero assim. Temos que dar um jeito nisso. E não me digam que não há jeito, que, pelo contrário, o português brasileiro se distanciará cada vez mais do europeu. Penso que, na verdade, só falta é algo equivalente à TV Globo do outro lado do Atlântico. Pensam que meu modelo é o que acontece entre Estados Unidos e Inglaterra? É. Muitas vezes eles não se entendem (e há a famosa frase que diz que os dois países são separados pela mesma língua), mas há uma convenção “mid-Atlantic” que funciona. E em filmes históricos atores e sotaques britânicos e americanos se misturam sem ninguém ligar, além de cantores populares dos dois países se comunicarem com as plateias dos dois lados sem que sempre o ouvinte defina de onde é quem.
Hoje vi um show de jazz em que a paulistana Amanda Ruzza arrasava no baixo e na liderança da banda. Era mais samba-jazz, mas com aquele grau de exigência americano. O jazz pode ser uma delícia se você se entrega ao milagre de ver ao vivo pessoas conjugando perfeitamente tempos, frases e acordes surpreendentes em sintonia quase telepática. É música de músicos. Às vezes dá a impressão de que se está desperdiçando talento. E nem sempre isso produz alegria. Mas Amanda produz alegria com seu inglês rápido e seu português imediato, límpido e sincero (ela falava quase tudo em inglês mas alguns títulos e nomes de pessoas eram em português e aí vinha sem mácula em meio à frase inglesa). Também com o grande prazer com que toca e faz os outros tocarem.
Andei uns cinco quarteirões no frio, com restos de neve ainda sobre as calçadas. Os postos de gasolina estão lotados de carros buscando combustível. A desordem provocada pelo furacão Sandy ainda é perceptível. E ontem à noite houve uma nevasca violenta com vento forte. Faltam muitas coisas nos supermercados. E acabo de ver Obama chorando ao agradecer a seus colaboradores de campanha.
Entendi o argumento de Mangabeira sobre ser mais promissor agora um Partido Democrata na oposição e refazendo-se do que quatro anos de realimentação da direita histérica. Mas, se eu fosse eleitor aqui, votaria em Obama. Os argumentos da “The Economist” me convenceram bem mais. Mas eu votaria na emoção, mesmo sem bons argumentos. É realmente forte que os EUA tenham não apenas eleito mas reeleito esse mulato. Vamos ver como o mundo segura essa.
Voltando à língua portuguesa: o que aconteceu com o disco do MPB-4 com versões de boleros? Ouvi e escrevi sobre, mas nada vi nos jornais. Esse grupo que cedo firmou a sigla que apelida nossa música tem um histórico que não se pode desprezar. Por isso e pela memória do Magro, faço questão de relembrar aqui o lançamento do disco.
Caetano Veloso.
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