Nanda e Freixo (13/05/2012)
Fernanda Torres, um fenômeno de talento cênico, impressiona também pela lucidez com que pensa, fala e escreve. Eu, que aqui exponho tão repetidas vezes os males de uma tradição retórica fincada no barroco do Padre Antônio Vieira, invejo a clareza dela. Num artigo seu que acabo de ler na “Folha de S. Paulo”, Nanda fecha a lúcida apreciação que fez do encontro em torno de Marcelo Freixo, pré-candidato à Prefeitura do Rio, a que ela foi convidada, com a constatação de que “o problema é que a política não tem centro”. Ela estava se referindo à dificuldade de se decidir por um candidato que parece recusar-se a se abrir ao interesse privado, quando os que não temem parecer presa destes se mostram dinâmicos e positivos. Em suma, ela (que descrê da força da opinião de artistas sobre os eleitores) compara a reunião com Freixo a outra a que também compareceu e que se dava em torno de Sérgio Cabral. Ficou-lhe a impressão de que Freixo representaria a militância imaculada e o isolamento, ao passo que Cabral (“apesar de e por causa de Paris”) seria mais realista.
Talvez — e para ser fiel a minha retórica barroca — eu deva começar a comentar pela conclusão. Será verdade que não há centro em política? Suponho que os ideólogos fingem que não existe centro para a realidade, complexa, não atrapalhar seus argumentos. Mas a vida política real tende a arrastar tudo para o centro. Felizmente. Claro que há momentos revolucionários e cristalizações de mitos conservadores ou regressivos. Sabemos que houve Sierra Maestra e que houve Auschwitz. Mas são momentos de exceção. Zizek e Badiou gastam páginas e páginas para nos contaminar com a nostalgia das revoluções comunistas (Zizek tenta nos convencer de que não se pode equiparar as marchas da Coreia do Norte às paradas nazistas). Mas a política pedestre de todos os dias, de todas as eleições, as decisões tomadas em nome do que aprendemos a chamar de democracia, são medianas. Não é só nos EUA que um Santorum tem de cair fora para deixar o moderado Romney tentar derrubar Obama. Os governos socialistas europeus (de Mitterrand a Zapatero) chegaram ao poder para pôr em prática políticas que, se fossem defendidas pelo centro ou pela direita, seriam recusadas. A Carta aos Brasileiros de Lula não foi diferente. Lula só saiu dos 30% que mantinha em todas as eleições que perdeu porque se comprometeu em manter a responsabilidade econômica iniciada com o Real. E se manteve no poder porque fez acertos e acordos com amplo leque de grupos políticos.
Nanda parece equacionar esquerda com pureza e direita com corrupção. Mas ela chama cada uma delas, sabiamente, de “velha”: velha esquerda e velha direita, das quais ela confessa não gostar. O que parece tornar as coisas difíceis para ela é que nem Sérgio Cabral representa a velha direita nem Freixo a velha esquerda. São figuras tipicamente contemporâneas. Ela escreve como se o componente de corrupção fosse incontornável e a ambição de pureza inatingível. O que me soa bastante sensato. Mas a política também se faz de altas apostas, de ambições que podem parecer grandes demais. De minha parte, vejo que atravessamos um período em que nos debatemos para sair do baixíssimo nível moral em que se dá o trato da coisa pública entre nós. Percebo que Nanda está sofrendo mais por não poder decidir-se a votar num Freixo e, assim, deixar de reeleger quem já está perto dos responsáveis pelas UPPs, pela vinda de Beltrame para o Rio e pela “euforia” que tomou o Rio de Janeiro nos últimos dois anos. Mas o artigo dela também sugere que todas essas conquistas têm o preço incontornável do caixa dois, da propina, da sujeira.
Ora, o PSOL é o partido da “pureza”. Foi por não aceitar as concessões do PT quando chegou ao poder central que esse partido surgiu. A mim, agrada-me que eles tenham posto a palavra “liberdade” em seu nome. Mas pureza revolucionária não é meu lance. Freixo se impôs por sua capacidade de mudar o tom do ambiente político do Rio. Em pouco tempo, ele chegou à façanha de criar a CPI das Milícias. É um homem que entrou na Alerj com pedido de CPI sobre as relações da Delta com os governos do Rio de 2000 até nossos dias. Sua atuação na discussão sobre segurança pública e direitos humanos no ambiente legislativo marcou a vida política da cidade. Ou seja, da afirmação de gente como ele depende a política brasileira. Mas Nanda sabe que eu sou esquisitíssimo. Por exemplo: tomei ojeriza a Garotinho, mas nunca voltei a ter por Cesar Maia o horror que lhe tinha quando ele primeiro se candidatou. Seu terceiro mandato foi o que terceiros mandatos se arriscam a ser: cansado. Mas, como Freixo, acho que a Cidade da Música deve ser concluída e ativada. E leio sempre o Ex-Blog, com proveito.
Ouvi Freixo na casa de Wagner Moura, antes dessa reunião a que Nanda se refere (e para a qual fui eu que a convidei). Ele explicava que não se esquiva de aproximação com empresários. Apenas é claro que, num momento de pré-campanha, o PSOL só pode aceitar contribuições de pessoas físicas. Mas ele conversa com empresários, sobretudo aqueles que estão cansados dos esquemas viciados ainda em vigor. Quando chegar a hora, muitos deles poderão doar para a campanha. Sou 100% Freixo. E quero convencer Nanda de que ele tem diálogo com empresários e, mais importante, não é querido só de artistas: sua atuação deixou marcas na população pobre, que o conheceu antes de nós.
Caetano Veloso.
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