Não vejo nenhum neostalinismo em curso, e polêmica é maluca, diz Caetano

Entrevista para a Folha de S.Paulo (24 de setembro de 2020)

por Marcos Augusto Gonçalves.

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Em entrevista exclusiva, Caetano Veloso, embora considere que deveria ficar em silêncio “para não aumentar a confusão”, contrapõe-se às investidas de que foi alvo após elogiar pensador tido como stalinista, conta que recebeu uma proposta antes da prisão, em 1968, para apoiar o guerrilheiro comunista Marighella, diz que prefere a visão do poeta Augusto de Campos sobre o tropicalismo à do crítico Roberto Schwarz e insiste que se o Brasil ficar “no acorde perfeito menor do liberalismo abastardado que vimos engolindo não faremos o que deve ser feito”.

Desde que declarou, em entrevista ao jornalista Pedro Bial, da Globo, que havia revisto seu juízo sobre o liberalismo e que não mais engolia sem questionamentos as equivalências entre extrema direita e extrema esquerda, Caetano Veloso detonou reações em série.

O fato de que tenha citado o teórico marxista italiano Domenico Losurdo (1941-2018), que descobriu por intermédio do youtuber e historiador comunista Jones Manoel, como um dos responsáveis por suas reavaliações foi visto por alguns como demonstração de que subitamente tornara-se um adepto de Joseph Stálin (1878-1953), líder da União Soviética no período mais brutal e totalitário do regime revolucionário implantado em 1917.

Nesta Folha, por exemplo, o colunista Pablo Ortellado considerou que Caetano havia “incensado o stalinismo” —e acusações nessa linha, com maior ou menor ênfase, se sucederam num debate frenético que tomou as redes sociais.

Na entrevista que se segue, concedida em troca de e-mails, Caetano, embora considere que deveria ficar em silêncio “para não aumentar a confusão”, contrapõe-se às investidas de que foi alvo, conta que recebeu uma proposta antes de ser preso pela ditadura, em 1968, para apoiar o guerrilheiro comunista Carlos Marighella (1911-1969), diz que prefere a visão do poeta Augusto de Campos sobre o tropicalismo à do crítico Roberto Schwarz e insiste que se o Brasil ficar “no acorde perfeito menor do liberalismo abastardado que vimos engolindo não faremos o que deve ser feito”.

O compositor está lançando em livro pela Companhia das Letras “Narciso em Férias”, um dos capítulos de “Verdade Tropical”, que foi publicado originalmente em 1997. Paralelamente, foi lançado o documentário com o mesmo título, que está disponível na Globoplay. Ambos referem-se ao período em que o compositor e seu parceiro Gilberto Gil foram presos pela ditadura militar.

As declarações em entrevista a Pedro Bial sobre suas reavaliações do liberalismo e a menção a Domenico Losurdo e Jones Manoel levaram a conclusões sobre o que seria uma adesão sua a uma espécie de neostalismo em voga. Pablo Ortellado escreveu que você deixou de lado as complexidades do tropicalismo e “se rendeu à irresponsabilidade narcísica, incensando o stalinismo”. Como você reage a essas considerações?

Acho que deveria ficar em silêncio para não aumentar a confusão. Não vejo nenhum neostalinismo em curso. Lina Bardi era stalinista. Me disse isso com ênfase à mesa do jantar em sua casa de vidro. Ela já aos 80. Jones Manoel nunca se disse stalinista.

Li 3 livros de Losurdo: “O Marxismo Ocidental”, “Hegel e a Liberdade dos Modernos” e “Um Mundo Sem Guerras”. Agora um amigo editor me mandou o livro dele sobre Stálin. Comecei a ler. É grandemente informativo. Ainda estou nos primeiros capítulos, mas não diria que ele seja stalinista.

A leitura do tropicalismo que sempre amei foi a de Augusto de Campos. Feita no calor da hora e sem nada dessa conversa de “arcaico + moderno” etc. A do marxista ocidental Roberto Schwarz, que ecoa na do liberal Ortellado, eu não sei se entendo bem. Devo reconhecer que o uso do esquema feito por Ortellado foi, a princípio, mais generoso do que o de Roberto. Resultou, porém, muito menos educado e imitou expressões como “esquerda caviar” e “radical chic” (de que eu já desdenhava em “Verdade Tropical”).

Augusto escrevia como criador, como quem está com a mão na massa. Esses uspianos estão sempre mil furos abaixo dos concretos. Melhor divulgar o filme de Renato Terra e Ricardo Calil do que alimentar polêmicas malucas.

O capítulo que se segue a “Narciso em Férias” em “Verdade Tropical” começa por dizer que, se pensarmos nos que sofreram tortura e nos que morreram nos porões do governo militar, meu relato da experiência na prisão quase não se justifica. Em 1968, minha colega de faculdade Lourdes Vellame, que sempre fora socialista, juntou-se ao grupo de Marighella e me propôs eventual apoio logístico. Eu disse “sim”.

Eu não gostava do PCB, mas gostava de Marighella por ele parecer promessa de experiência diferente. Mas fui preso antes de qualquer ato próximo a isso sequer se esboçar. Os militares não tinham essa informação —nem eu a pus no livro ou contei no filme, pois não queria dar a mínima chance de uma prisão arbitrária poder ser tida como justificável.

Lourdes foi presa, torturada e revelou-se tão valente que o próprio Fleury [delegado Sérgio Fleury, que atuou no Dops de São Paulo durante a ditadura militar], em reportagem na revista Realidade, disse que passou a admirá-la. Que o prestígio do filme sirva como denúncia em escala ampla do que se passou no Brasil naqueles anos.

Você disse na conversa com Bial que saiu da ditadura militar pensando “eu sou liberal”, mas embora sempre tenha manifestado desconfianças em relação a partido único e estados autoritários de esquerda, você parecia mais um antiautoritário, um “mulato democrático do litoral”, do que exatamente um liberal, o que supõe também certas visões econômicas. Concorda?

“Sou um mulato democrático do litoral”, ironia em verso de samba à famosa fórmula de Euclides da Cunha (que eu acho grandíssimo escritor), diz bem o que quero afirmar. Eu era um menino que tendia para a esquerda, mas tinha aprendido com meu pai a desconfiar das autocracias que resultaram das revoluções socialistas.

Em Londres, e depois da volta ao Brasil, fui me identificando mais com o liberalismo. Conto em “Verdade Tropical”. Lá retrato o grupo contracultural (em que me inseria) oscilando entre estar à esquerda da esquerda e o liberalismo dominante.

Sou antiautoritário. A minha primeira pergunta a Jones Manoel, na entrevista que lhe fiz para a Mídia Ninja, veio precedida da declaração: “Se eu vivesse num país comunista, eu seria um dissidente”. O essencial para mim é o respeito às liberdades individuais. Mas aprendi agora que essas liberdades reduzem-se, na prática, à liberdade de acumular riqueza.

O que vemos há muito tempo é um acorde perfeito menor a respeito da ligação automática da democracia com o liberalismo econômico. Este, apelidado de neoliberalismo, foi ensaiado no Chile de Pinochet e, depois, por Thatcher e Reagan, com uma dominação anglófona do mundo e desregulação do financismo.

No Chile, sem democracia; na Inglaterra e nos EUA, como suporte de democracias que se acostumaram a dominar povos mais vulneráveis e deixar correr instituições racistas. Me lembro de ter dito em entrevista (acho que a esta Folha) que a esses liberais tipo Reagan e Thatcher eu preferia são Francisco de Assis.

De que forma seu interesse por Mangabeira Unger já faria parte desse seu processo de reflexão? Você, aliás, apoiou Ciro Gomes na eleição presidencial, ele que não é exatamente um liberal... E há alguns anos, num encontro, me disse que estava ficando “mais de esquerda mesmo”... Como essas coisas foram evoluindo em suas reflexões?

Mangabeira me excitou muito a mente desde que li artigos seus na Folha. Depois li “Passion”, “The Self Awakened” e “A Religião do Futuro”. Comecei por gostar do brizolismo dele quando escreveu que a esquerda brasileira queria concentrar-se no trabalhador organizado da franja industrial de São Paulo, deixando de considerar a maioria desorganizada das classes subalternas do resto do país.

Mais tarde, me fascinou sua visão da economia de mercado como algo a ser tratado de modo novo por um projeto de democracia aprofundada. Ele tem uma mirada muito diferente da de Losurdo ou dos que se dizem marxistas. Além de ver na modernidade uma revolução em andamento há alguns séculos, ele considera o liberalismo e o socialismo como extensões profanas do cristianismo.

Gosto da crítica dele ao marxismo por este apresentar um esquema de estágios estanques da história, um determinismo fatalista que parece negar a invenção do novo. O convite dele a uma atitude profética me atrai.

Antes da entrevista com Bial, eu tinha visto uma live em que Mangabeira desqualificava as interpretações “culturalistas” do Brasil, onde se busca uma originalidade nacional. No entanto, na mesma conversa, ele repete algo que já vem dizendo há muito tempo: que a característica mais marcante do povo brasileiro é sua vitalidade; uma vitalidade anárquica, quase cega, a que é preciso dar-se olhos, asas etc.

Na entrevista a Bial, eu tinha perguntado: essa qualidade do povo brasileiro é ou não uma marca cultural que está ali automaticamente posta como passível de comparação com outros povos? Nunca me referi a Mangabeira em minhas conversas com Jones Manoel. O que disse dele na entrevista com Bial foi cortado. Talvez com razão, dado o tempo do programa e o ar de digressão do comentário.

Hoje me reencontro mais nas sugestões do Mangabeira de “A Economia do Conhecimento” do que com uma possível revolução socialista que certamente Manoel tem em mira.

Bem, votei em Ciro Gomes e, tendo lido o livro dele, “Projeto Nacional”, penso em poder fazê-lo mais uma vez. Conheci Ciro como prefeito de Fortaleza, muito jovem. Conversei um pouco com ele e logo pensei: “Esse cara tem um futuro político muito grande. Sinto que ele vai chegar a presidente. O primeiro nordestino em meu tempo de vida a chegar lá. Um nordestino que fala como nordestino”.

Quando Collor venceu aquela eleição, pensei: “furou a bola do jovem nordestino no Planalto, isso enfraquece a chance de Ciro”. Mas Collor passou rápido. Ciro foi governador, parlamentar, ministro e candidato a presidente. E o nordestino Lula (embora operário da franja industrial do ABC) se fez exitoso presidente da República.

O encontro de Ciro com Mangabeira em Harvard e a colaboração entre os dois significou muito para mim. Meu liberalismo, sob observação crítica mesmo antes de Manoel/Losurdo, é mais John Stuart Mill. Ninguém precisa me dizer que este ter trabalhado na empresa que oprimia a Índia desqualifica tanto o liberalismo quanto Marx e Engels terem contado com a grana da empresa do pai deste último desqualifica o marxismo.

Losurdo foi do Partido Comunista a vida inteira, eu nunca fui do Partido Comunista. Nunca seria. Mas nunca li de nenhum comunista —nem dos mais sofisticados marxistas ocidentais — nada que respondesse a perguntas que sempre tive diante de questões profundas relativas aos projetos liberal e socialista quanto Losurdo faz.

Gostava de Ruy Fausto, ex-trotskista, e sua esquerda crítica. Mas ali quase nada restava do esforço do socialismo real. E a sutil desconfiança que os ex-trotskistas me inspiravam encontra explicação nas informações que só leio em Losurdo.

Seja como for, é certo que a visão de Stálin e Hitler como gêmeos idênticos, tal como sugeridos por Hannah Arendt, não me entra mais. E olha que, depois de ler Losurdo, li dois livros de outro italiano fascinante que volta a essa balança arendtiana com força: Roberto Calasso, um autor da mesma geração de Losurdo (que é a minha) e que escreve muito bem. Faz um retrato da atualidade muito instigante, quase poético.

Sou cantor e autor de canções. Jones Manoel falou corretamente sobre mim ao dizer que me é grato apesar das diferenças.

Você disse que a conjuntura atual (eu incluiria Trump nisso antes de Bolsonaro) não teria influenciado tanto essa sua revisão. Tem certeza? E o impeachment de Dilma Rousseff e a prisão de Lula? Foram fatos relevantes para te fazer repensar visões anteriores?

Você tem de ver que a ênfase dada a minha sincera repulsa às autocracias socialistas que se ouve no filme “Narciso em Férias” se deve a meu intuito de denunciar a injustiça de minha prisão e a arbitrariedade caótica dos atos da repressão militar daquele período.

Fui preso sem que me apresentassem os motivos. No segundo mês de encarceramento me trazem as acusações: ter cantado o Hino Nacional com letra paródica desrespeitosa e fazer um trabalho filocomunista. Diante das câmeras quis frisar que nunca fui filocomunista, isso para sublinhar o arbítrio da ditadura, atendo-me à verdade dos fatos. A conjuntura atual influencia tudo o que digo, penso e faço. Isso é incontornável.

Só que a virada de perspectiva quanto ao liberalismo e o esboço de revisão do meu anticomunismo não se deram quando do impeachment de Dilma nem quando da eleição de Trump ou da subida de Bolsonaro. Se deram quando ouvi Manoel e li Losurdo. Um comunista que pensa. E estuda minúcias da história do século 20 (e não só), apresentando dados e argumentos importantes.

Por que você ficou com vontade de publicar o capítulo “Narciso em Férias”, de “Verdade Tropical”, como um livro à parte? Achava que deveria iluminar essa passagem de sua vida de maneira mais direta?

Porque acho a parte mais estruturada literariamente do livro, uma peça de prosa que vale por si. A Companhia das Letras tinha lançado o capítulo “Antropofagia” em separata. Na altura já pensei: não vale como livro.

Concordava com a opinião da dançarina Maria Esther Stockler (a quem, ao lado de meu pai e de minha irmã Irene, o novo livro é dedicado): “Narciso em Férias” se sustenta como literatura, diz em forma narrativa tudo sobre o que aparece nos outros capítulos em forma ensaística.

Também porque sentia que era errado que muita gente não soubesse do que se passou comigo e com Gil sob o regime militar.

Você cantou em sua live “Nu com a Minha Música”, canção lançada em 1981, na qual diz que vê uma trilha clara para o Brasil, apesar da dor —o que seria uma “vertigem visionária que não carece de seguidor”. Essa afirmação de um desejo, de uma vontade ou de uma convicção sobre o Brasil, em tom visionário, é uma característica que te acompanha há tempos. Que trilha você vê para o Brasil, hoje, apesar da dor?

Sempre vi na nossa situação periférica meio dissonante uma oportunidade de mudar as coisas do mundo.

Acabo de ler um artigo de Monica de Bolle em que ela mostra a situação da América Latina em face da pandemia da Covid-19. O Brasil está, como toda a região, entre os piores casos de enfrentamento do problema. Em países de governo de esquerda, como o México, ou de direita, como o Brasil, os resultados sanitários e econômicos são dos piores em todo o mundo. Sinto a dor da nossa história.

Quase desaparece o que consigo ver apesar dela. Mas já passei por momentos piores, e o sonho não se desfaz. Vejo que o Brasil é uma oportunidade de passagem, digamos com esses nomes, do Reino do Filho para o Reino do Espírito Santo. Isto é Narciso em Atividade. Não posso admitir que o país onde nasci, a língua em que comecei a falar, a minha mulatice física e mental sejam anulados.

Trilha? Vejo-a esboçada na “utopia desesperada” de Hermano Vianna em seu artigo sobre inteligência artificial, uma visão de antropofagia vivida nos novos termos. Isso se liga ao desafio de Mangabeira, que convida o país a acelerar a economia do conhecimento sem fazê-lo em ilhas como o Vale do Silício ou franjas do comércio, mas de modo democratizado. Para mim é mais do que ter esperança. É ser responsável com nossas potencialidades.

Não digo que isso deva dar-se pelo caminho revolucionário de Jones Manoel, mas que se ficarmos no acorde perfeito menor do liberalismo abastardado que vimos engolindo não faremos o que deve ser feito. E sem as críticas de Losurdo, Manoel e Sabrina Fernandes não teremos cabeça livre para pensar com coragem sobre essas ambições.

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