Nenhum Elvis (18/11/2012)

Las Vegas é bem mais cidade do que Los Angeles. Isso eu não imaginava. Bem, tudo o que você vê parece ter sido produzido num Projac (Projeto Jacarepaguá, que é o que significa esse apelido) hipertrofiado, mas os volumes arquitetônicos e suas disposições urbanísticas sugerem o que reconheço como cidade. Eu supunha que ia encontrar estradas cortando o deserto e, de repente, aquela breve concentração de cassinos com luzes coloridas desamparada diante da vastidão do mundo. Tudo em Los Angeles (ou Tucson ou Phoenix) parece um precário esboço de concentração urbana aberto para o céu, o vazio, a rodovia expressa, o deserto, os olhos do coiote.

Cidade para mim significou sempre Santo Amaro, ou seja, um lugar onde a gente entra e se vê rodeado de sólidas paredes de alvenaria. Neguinho chegava do trem ou do navio e entrava, por uma porta larga, em território urbano, com calçamento de paralelepípedo e casas coladas umas às outras: o mundo selvagem das matas, dos mangues, dos braços de mar ficando fora dos muros. Mesmo depois de o rodoviarismo de JK e dos milicos (e de quem mais chegou) ter aproximado minha cidadezinha da Cidade do Salvador com pistas asfaltadas, sentimos que, passados uns meandros de acercamento, a estrada finalmente nos entrega a uma realidade absoluta chamada Santo Amaro. De fato internalizamos a cidade murada das Antiguidades e da Idade Média: não concebemos uma cidade como um ser contingente, com as ruas abertas para o sem sentido. Em Los Angeles temos a impressão de que nunca chegamos à cidade propriamente dita.

Esperei isso de Las Vegas. Mas não. O número incrível de hotéis imensos, cada qual com seu cassino no foyer, se dispõe em total urbanidade. A imitação do edifício da Chrysler de Nova York, os palazzos venezianos (ligados por gôndolas delineadas por neon), o Arco do Triunfo e a Estátua da Liberdade conformam uma cidade tão convincentemente quanto os conjuntos de prédios mais anódinos de São Paulo. Desse ponto de vista, sinto-me mais em casa do que nas não cidades do Sul e do Oeste. Mas é claro que a mera existência de exércitos de velhinhas sentadas diante de máquinas caça-níqueis no lobby dos hotéis já põe uma pobre cabeça como a minha fora de esquadro.

O fato de as pessoas poderem fumar nesses recintos fechados é algo escandaloso, num país onde até nos parques já é proibido fumar. O tabaco e a prostituição são liberalidades exclusivas de Sin City? Confesso que o cheiro de cigarro me deu mais sensação de familiaridade do que de paranoia: é o cheiro de quando eu era novinho. Vi poucas putas e nenhum Elvis. Mas fui a um restaurante que tinha, ao mesmo tempo, uma das melhores comidas que já experimentei (um peixe ao forno melhor do que o da Osteria dell’Angolo) e a mais feia decoração de interiores que já vi. Umas luminárias imensas pareciam ser feitas de osso humano em liquefação (como quando vemos objetos sólidos derretendo em viagens com alucinógenos), enquanto os carpetes sugerem o caminho inverso do percorrido pela pintura de Beatriz Milhazes para rimar humor e dor.

Las Vegas vai ficando mais e mais estranha, como num sonho um lugar corriqueiro começa a parecer assombrado. É, tranquilizadoramente, uma cidade: suas avenidas são largas como a 9 de Julho em Buenos Aires, suas esquinas são esquinas, com certeza não estamos em Brasília. Mas as dimensões são apavorantes. Você pode gastar 20 minutos andando do elevador à portaria, dez atravessando a rua a pé. E a forma e o material de tudo o que enfeita cada prédio faz pensar que estamos num imenso estacionamento de carros alegóricos de escola de samba sob uma luz sem compaixão.

O exagero, a sensação de desperdício, tudo faz pensar na fatal derrocada da economia capitalista no estado em que nossa geração a encontrou. Há os jogos, as putas e o fumo, mas também farto entretenimento tipo família. Um “Love” dos Beatles (que eu adoraria trazer meus filhos e netos para ver), vários espetáculos do Cirque du Soleil. No show do Grammy Latino, havia gente desses circos e o Blue Man. Nessa festa eu me apresentei, tímida e modestamente. Na noite anterior me comovi com Natalie Cole cantando “A little more blue”, Juanes cantando “Sampa”, Juan Luis Guerra cantando “Lindeza”. E mais. Lila Downs, Alexandre Pires, Natalia Lafourcade, Nelly Furtado, Tania Libertad, Seu Jorge, Mala, Enrique Bunbury. Ao meu lado, Sonia Braga. E a voz de Nicinha veio com “Alguém cantando”. Voltei por caminhos alegóricos e corredores de pesadelo. Mas ficou alguma alegria na imagem dessa cidade. A alegria das festas ingênuas. Feita de balões gigantes proibidos, trios elétricos resplandecentes, maracatus atômicos.

Caetano Veloso.

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