Nomes (22/04/2012)
Muito bonito o filme “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Beto Brant e Renato Ciasca. Quem vê Canal Brasil se lembra de que já sentimos que cenas de sexo serviam para produtores e diretores pensarem que assim imprimiriam força em obras que de outro modo não teriam força nenhuma. O que, é claro, as fazia ainda mais fracas aos nossos olhos. Isso chegou a um grau tão alto que passamos a imaginar que pessoas nuas em contato íntimo esvaziariam qualquer filme brasileiro. As exceções existem, mas não são suficientes (nem em número nem em intensidade) para desfazer o mal-estar. O fato de esse problema desaparecer no filme de Brant e Ciasca não é o maior dos seus méritos. O que parece incrível. É mais o modo como drama interpessoal e quadro social se entrecruzam no filme, com o roteiro sendo suficientemente dramático e sugestivo sem seguir sejam as regras dos filmes convencionais, sejam os vícios dos filmes de arte.
Faz anos que não vejo um flashback tão bem chegado, tão independente de qualquer indicação de que se trata de um flashback e, no entanto, funcionar como histórico da personagem já conhecida de maneira clara e forte. Os atores estão muito bem (e a figuração luxuosa do povo paraense, cantando magnificamente bem nas reuniões religiosas, que parecem uma síntese de Teologia da Libertação católica, neoevangelismo e Santo Daime), mas Camila Pitanga é um acontecimento que faria o filme ser importante se fosse só pela sua atuação. Todos conhecemos Camila. Em “Redentor”, filme não suficientemente valorizado, ela era uma das mais belas mulheres da história do cinema, sendo Sophia Loren, Elizabeth Taylor e Ava Gardner ao mesmo tempo — sem se parecer com nenhuma delas. Mas aqui, ainda que, de fato, a gente saiba que receberia más notícias de lábios tão lindos, ela nos dá a boa nova da grande força artística.
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Senti não poder ir ver Dylan desta vez. Queria saber se ele finalmente tinha deixado de pintar o cabelo (como uma foto em que aparece grisalho fez crer) ou se ainda mantinha o visual Sarney da última passagem pela HSBC Arena (que nome medonho!). Sobretudo queria ouvir aquele som roufenho improvisando melodias sobre letras incompreensíveis, de modo a criar apostas entre espectadores sobre que música ele estaria cantando. Sinceramente, é um clima fenomenal que a presença dele cria. Aquela apresentação americana tradicional, em que um locutor (de modo a parecer exagerado) exalta a importância do artista que vai entrar (coisa que lá nos States eles usavam muito: cansei de ver Ray Charles, Sarah Vaughan ou Stevie Wonder serem anunciados como os maiores não-sei-o-quê que já houve, sem falar nos anúncios de figuras como James Brown, que duravam quase tanto quanto o show inteiro), parece tão ostensivamente não irônica que comove. Viva a América. Deus Salve a América. Já pensou você ir ver Djavan e, antes de ele entrar, uma voz de anunciador de UFC gritar “O cantor mais afinado do mundo, o mestre das harmonias e do balanço, conhecido como um dos maiores autores de canções de todos os tempos!”, ou Chico Buarque sendo precedido dos brados de “O maior compositor que já existiu, as mais perfeitas rimas, o mais irresistível charme sobre um palco”? Mas Bob já tinha dado seu depoimento sobre essa possível comparação, ao contrapor-se a João Gilberto, no texto de contracapa de “Bringing it all back home”, dizendo que já tinha desistido de qualquer tentativa de perfeição. Referência que, aliás, ele confirma em sua autobiografia, intitulada (escreveu um dia, não sei por quê, um jornalista que modestamente) “Crônicas”, ao lembrar que, enquanto ele e seus amigos cool do Village refinavam o folk, no Brasil, João Gilberto, Carlos Lyra e Menescal “libertavam o samba do batuque” e criavam a bossa nova. Essa ideia de que eles “libertaram o samba da batucada” é um lugar-comum americano que eu discuti no meu livro intitulado (escreveu o mesmo jornalista, tampouco entendo por quê, pretensiosamente) “Verdade tropical”. Sou contra. Explico lá. Mas Dylan é, de qualquer ângulo, o gênio que a gente flagra ao ouvi-lo cantar “One more cup of coffee”. Preferia tê-lo visto de novo.
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Falando em “Verdade tropical”, o artigo de Roberto Schwarz sobre esse meu livro é realmente um assombro. Tantos anos depois, traz de volta a atenção para o que há nele. Não é pouca coisa para mim. Já fiz a comparação entre isso e o modo como o livro foi traduzido na França (eu disse: por analfabetos, já que se tratava do livro de um cantor de rádio — e, acrescento agora, de um país periférico, ou que pelo menos ainda o é para analfabetos). Mas aqui queria dizer que, o que quer que se discuta a respeito dos pitos ideológicos que Schwarz passa no autor, é de envaidecer que o artigo seja tão longo, tão cheio de inteligências e tão intenso. Dá vontade de escrever mais. Considero aqui um aspecto que talvez não ocorra a quem leia o que Roberto escreveu: sua generosidade para comigo. Minhas discordâncias já foram expressas em entrevistas. E as mantenho, mas não posso deixar de ressaltar minha gratidão.
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Será que a CPI do Cachoeira vai ser o fim de mundo que a do Bingo não foi? Não. Acho que aqui a gente sempre dá um jeito. Ainda. Eduardo Giannetti me perguntava se uma mudança no Brasil que nos fizesse parar nos sinais vermelhos não iria matar nosso charme. Eu: não. O Brasil fará coisas novas com as ferramentas de clareza que já são usadas alhures.
Caetano Veloso.
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