Papo furado (28/08/2011)

O mundo acabou. Kadafi (que o “New York Times” e a “Folha de S. Paulo” chamam de Gaddafi) caiu mas não saiu. Dilma explica que a faxina é acabar com a fome. Sarkozy faz o que os americanos nem podem admitir que se diga. No entanto, nada é tão fácil. O laissez-faire ianque e o bem-estar social europeu são dois lados da democracia liberal que pifaram igualmente. Marx, como Lobão, tem razão — dizem os não marxistas notórios. Leio no livro de Alex Ross sobre a música no século XX que “no dia 16 de janeiro de 1940 Stalin assinou 346 sentenças de morte — a de Meyerhold e a de Bábel estavam entre elas”. Stalin tinha razão — e Hitler também — contra o bolchevismo cultural e a arte degenerada. Para que serve toda a política estilística que heróis enraivados como Pierre Boulez tocaram? Nada sabemos.

Temos de começar pela admissão de que não temos chão firme sob os pés. Borrões e ruídos, frieza matemática e silêncios medidos, caos expressivo que sugira alguma ordem e expressões de extrema ordem que intensifiquem o caos — para que serve tudo isso? Bem, leio Alex Ross e Aline Barros. Moreno me deu a autobiografia dela. A música ruidista ou ultraformalizada prefigurou o mundo da Guerra, da Guerra Fria e do pós-Guerra Fria. E o rock, que não está ausente do canto de Aline, como o gospel não faltou na invenção do rock. Como mudaremos agora? Quão longa será a travessia?

Esse papo furado todo veio na esteira da finalização do disco de Gal: uma vez ouvida a cópia masterizada, comecei a querer fazer outra coisa, imaginar melodias, frases, opiniões (sou do tempo em que canções queriam também emitir opiniões). Saio do confinamento em estúdios e tenho tempo de olhar para o mundo antes de ir me deitar para dormir. (Da cama, olho-o sempre — com o olho fechado e assustado de quem se deita na noite, mesmo que já seja de manhã; mas agora, sem estúdio, vejo filmes, converso, releio jornais.) Ouço música. O disco “Chico”, ouvi enquanto gravava Gal. Mas o vivenciei mesmo depois que parei de trabalhar. Ouço Zé Miguel. Tudo veio na enxurrada que começou com a composição não planejada de uma canção que penso em tocar com a BandaCê. Nasceu Nino, o filho de Pedro Sá, e as saudades da banda aumentaram. Não tive tempo ainda de ir conhecer o filho desse meu filho emprestado. Esse neto emprestado que tem um dos nomes do meu filho mais velho. Há muita coisa bonita nesse mundo — e para poder saber disso precisamos dos barulhos e silêncios insolentes da música do século passado, das manchas informes e dos traços geométricos das pinturas que antecederam os becos-sem-saída dos museus e galerias — e também das ruas e pradarias dos países em aparente dissolução.

Sinto alegria em ver as fotos dos rebeldes árabes. E dos espanhóis. E mesmo dos ingleses que finalmente desmentem a letra dos Rolling Stones que dizia “na sonolenta Londres não há lugar para guerreiros de rua”. Era Mick Jagger com nostalgia do que se passava do outro lado do Canal da Mancha (que só os britânicos chamam de “Canal Britânico”). A entrevista de Pedro Almodóvar (que é da Mancha) ao jornal “El País” me fez sentir a alegria como sinal dos tempos. Sou de uma geração politizada, ativista. Eu próprio desejava me despolitizar, explicar aos outros que nem tudo é política. Mas sentia que naquele tempo das passeatas brasileiras, do maio francês, das demonstrações americanas contra a Guerra do Vietnã, da guarda vermelha de Mao Tsé-tung tinha como que um anjo bem torto dando o tom das atitudes humanas sobre a Terra. O afastamento desse anjo deixou uma saudade que diz que é triste um cotidiano sem desejo de transcendência. Os jovens líbios e espanhóis, ingleses e sírios, egípcios e tunisianos vistos em fotos de jornal trazem de volta uma alegria muito específica. Um novo anjo passa pelo mundo. Quero paz e segurança para o filho de Pedro (me identifico mais com Claire do que com Justine quanto a isso — para voltar ao estranhamente agradável filme de Von Trier) — e sei que ambições políticas vividas coletivamente podem trazer desconforto. Mas sou da fuzarca. Este mundo é um pandeiro. Em 1968 eu gostava de Marighella. Lamentei não ter podido participar do filme sobre ele: quase contribuí com apoio logístico para a luta armada (nunca contei isso de público e, como fui preso sem que os milicos tivessem nada contra mim — esse esboço de participação era um segredo entre mim e Lurdinha, minha valente e íntegra colega de faculdade que, como eu, preferira a dissidência de Marighella à sensatez soviética do PCzão —, não quis dar a meus algozes o gosto de confirmar que eles tinham algum motivo justificável para me prender) e, quando a revista “Manchete” publicou capa em que Gil e eu aparecíamos sorrindo no exílio londrino sob a foto de Marighella alvejado, escrevi texto para o “Pasquim” dizendo “Gil e eu estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós”.

Ninguém entendeu meu texto na época. Ouviram o nome de Marighella numa gravação em que ele não fora pronunciado, mas não captaram o óbvio explicitado na crônica do “Pasquim”. Estar no exílio é também perder a noção de como funcionam as cabeças das pessoas que ficaram dentro do país.

É inevitável a alegria que se nutre até dos atos do Tea Party (por que não, se tivemos alegria com a Guarda Vermelha?). O que estamos preparando? O Quinto Império de Vieira? O Reino do Espírito Santo superando o do Filho? O mundo acabou. Salvemos o mundo.

Caetano Veloso.

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