Quinto (30/09/2012)
Eu vinha do Jardim Botânico com meu filho na madrugada vazia. Ele no assento do carona e o rádio do carro ligado. Tocou “Pra que mentir” com Paulinho da Viola acompanhado de César Faria, seu pai, no violão. Já conhecia a gravação de inúmeras audições, mas fazia algum tempo que não a escutava e — mais importante — meu filho nunca a tinha ouvido e não se lembrava particularmente desse samba de Noel (eu canto vários para ele, desde que, menino, ele precisava que eu cantasse para ele dormir).
A gente sente essa identificação profunda com os filhos, funde a alma nas deles, adivinha caminhos por onde elas começam a conhecer o que a gente supõe que já sabe. De repente eu ouvia “Pra que mentir” com Paulinho pela primeira vez. Que maravilhamento! A afinação se firma na voz dos cantores das mais diferentes maneiras. Quando se firma. Em Paulinho — em especial nesse Paulinho de “Pra que mentir” — surge uma afinação precisa, abissalmente inteligente e, no entanto, impensada, miraculosamente acontecendo na garganta, no peito, nos ossos da face, no ar ao redor, como uma emanação orgânica inevitável. Se ele está cantando “Pra que mentir”, o reconhecimento, por parte de sua mente, das notas a serem atingidas será assim. Sobretudo se o acompanha o violão de César, aquela baixaria celestialmente fluente e lógica. Eu me sentia em estado de graça ouvindo essa manifestação da arte brasileira no meio da noite. Poucas coisas são tão bonitas nesse mundo — e fruí-la assim, na espera do sinal do encrencado cruzamento Lagoa-Barra (espera que parece durar horas se a rua está, como estava, totalmente vazia: eu paro no sinal de madrugada), ganha caráter de revelação.
Um dos mais resistentes recalques que nossa clínica geral precisa vencer é a dependência do aval “internacional” para proclamar obra-prima universal o que é obra-prima universal mas ainda é propriamente conhecido apenas no Brasil. O outro lado da moeda é mais antigo: o de olhar com suspeição o que tem reconhecimento apenas ou predominantemente no estrangeiro. Mas são áreas diferentes da sociedade brasileira — e da mente de cada brasileiro — que reagem dessas formas opostas e complementares (ambas conservadoras e covardes) a fenômenos de criatividade oriundos do nosso país. Paulinho é exemplo luminoso. Lembro-me de ter lido no “New York Times” um respeitoso artigo sobre uma apresentação dele em Nova York. O crítico nova-iorquino considerou o concerto muito “austero”. A gente entende por quê. Mas se o Brasil tivesse o maior número de bilionários citados na revista “Forbes”, uma das mais potentes Forças Armadas e assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a gravação de Paulinho com César fazendo esse Noel seria reconhecida como um dos momentos mais altos da expressividade humana. E isso levaria a centenas de buscas e revalorações, com Elton e Dona Ivone, Wilson das Neves e Mumuzinho, Marcelo D2 e Pretinho da Serrinha sendo estudados por milhares de nerds na Carolina do Norte e na Coreia do Sul.
“Pra que mentir” com Paulinho da Viola e César é um dos ápices da criatividade artística mundial. Vi isso realizado, não como um esperançoso profeta amador arriscando uma aposta: vivenciei a irreversível realidade disso luminosamente reconhecida por todos os homens sintonizados com os caminhos da História. O Quinto Império. Vivenciei tudo isso como um profeta verdadeiro, meu filho ao meu lado me guiando, à medida que descobria as qualidades — para ele apenas tranquilamente constatáveis — dessa arte amadurecida em séculos de miséria, opressão e incômoda originalidade. Lembrei-me de que, faz uns anos, senti algo semelhante ao ouvir Marisa Monte cantar “Carinhoso” acompanhada por Paulinho ao violão (era naquele filme tão belo e cheio de momentos Saura, dirigido por Isabel Jaguaribe): Paulinho era o César de Marisa, que era um Paulinho mulher: o Noel dos Faria é o núcleo do que chegou até aquele Pixinguinha ali. Na hora em que os fatores invencíveis se reúnam; em que educação não seja um aspecto isolado como no bom discurso de Cristovam Buarque; em que o sucesso de Sergio Mendes e de Airto Moreira, o prestígio do CCS e do Bonde do Rolê (ou de Joyce no Japão) não pareçam irreais; em que o Brasil prove ter merecido a bossa nova - nessa hora brilhará no céu do mundo, numa das mais belas constelações, essa estrutura criada por pai e filho Faria a partir desse Noel-Vadico. Na encruzilhada confusa que ainda se chama, em parte, Praça Sibelius (quem teria escolhido esse nome?), deu-se a iluminação. Não era nada demais. Apenas um modo adequado de se receber o que Paulinho, César, Vadico e Noel nos ofertam nessa peça.
Caetano Veloso.
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