Recanto (27/05/2012)
O que mais surpreende no show “Recanto” é a adequação de Gal ao novo repertório. Surpreende os outros, digo. Não a mim. Ouvindo o disco, não faltou quem achasse que Gal simplesmente cantava as canções que fiz para sua voz sem se comprometer muito com elas. A opção por estilo sóbrio, mais próximo do cool dos nossos começos do que do barulho do final dos anos 1960 ou (principalmente) do sentimental-dramático de anos posteriores, deu espaço para quem tenderia para esse equívoco. Claro que houve quem, de cara, ficasse tomado pela conexão imediata entre a cantora e o repertório, principalmente por se deixarem levar pela densidade de “Recanto escuro”, a faixa de abertura do disco. Mas muitos permaneceram desconfiados, sem saber como entender. Li manchete de jornal que dizia que ela era “mera vocalista” num disco de criações minhas e, pior, que ela “confundia ideias”. O show na Miranda desfez, num golpe, toda e qualquer ilusão a respeito do que de fato se dá no caso “Recanto”. E ontem (quinta-feira) à noite, aqui em São Paulo, os conteúdos que o definem se mostraram de forma exuberante, intensa demais, quase violenta, mesmo para mim.
Vim, por decisão própria (a produção não me requisitou ou convidou), ver a estreia do show numa casa de grandes proporções, procurando chegar a tempo de assistir à passagem de som. Na verdade, quase não consegui isso, embora tenha tomado um avião para chegar a Sampa em tempo hábil. É que os engarrafamentos na Pauliceia estão tomando dimensões de pesadelo. A cidade, vista do avião perto do fim da tarde, me pareceu tão bonita e vívida que me comoveu. Os prédios, sob a luz oblíqua e já amarelada da tarde, vinda de um sol que varava nuvens escuras, pareciam conversar, como observou John Cage quando esteve aqui (Cage é uma das pessoas que melhor viram São Paulo de primeira: a sensação de que os prédios conversam entre si — por estarem, à diferença dos de Nova York, onde eles aparecem enfileirados, como que se voltando, por caprichos individuais, para onde cada um vê sua atenção atraída; a presença das flores de cores variadas que surgem entre massas de concreto e tufos verdes, numa frequência surpreendente para quem tem tempo interno de atentar para isso, já que a maioria parece não imaginar que haja flores aqui e, por isso, apaga da mente as tantas que vê, abafando-as com as paredes duras que guardam na memória; a beleza única do vão livre do Masp; enfim, tudo o que há de bonito nesta cidade para ser visto ao primeiro olhar, sem falar nos mistérios, segredos e tesouros discretos desta terra tão difícil de aprender mas tão recompensadora para quem decide pagar o preço). O trânsito não me impediu de ver algo da passagem de som e de ter uma ideia de como o show poderia ficar num palco grande. Gal estava saindo, ou começando a sair, de uma faringite-laringite que deixava sua voz muito vulnerável. O som do local, tratado do modo fino como Vavá Furquim o faz, resulta límpido. Como a banda de Domenico Lancellotti, Pedro Baby e Bruno Di Lullo é um milagre de economia e inspiração, tudo parecia excelente, e a voz de Gal se sentia quase em dívida com ela própria e com a oportunidade. Mas ela acreditava que a garganta ia aguentar. Na passagem, apenas três canções foram executadas.
Na hora do show, tudo o que me pareceu elogiável no teste se confirmou para um público grande (na Miranda, no Rio, tudo era sempre perfeito, mas é uma casa pequena, o que representa outro mundo para um show). Mas ao cantar “Divino, maravilhoso” a voz de Gal deu mostras de enfrentar grandes (possivelmente insuperáveis) problemas. E ela, ao fim do número, falou à plateia. Com firmeza e inteligência, até mesmo com humor doce, mas com uma ponta de incerteza de que seria capaz de ir até o fim. E até o fim, o que se viu foi uma Gal vencendo batalha após batalha. O que serviu, de modo arrebatador, para que todo o entendimento rico que ela tem do material com que trabalha se evidenciasse. Às vezes ela não atingia com nitidez as notas que buscava, mas o jeito como encarava as palavras e as melodias revelava, mais do que em qualquer das noites na Miranda, os conteúdos que o show potencialmente sugere. Sua linguagem corporal se fez mais eloquente do que nunca. Toda uma história, toda uma tradição cênica que não deveríamos jamais deixar de associar à sua persona pública revivia com força tremenda. E, quando ela cantou “Autotune autoerótico”, a plateia inteira se pôs de pé para aplaudi-la ainda no meio da canção. Todas as caras e todos os gestos de mãos e quadris que lhe ocorriam vinham impregnados da cultura acumulada desde 1967, quando ela pela primeira vez buscou um estilo extrovertido para substituir a quietude cool de seus inícios. Muitas figuras do mundo do rock eram evocadas, mais ou menos conscientemente, em cada virada de corpo, em cada olhar ígneo. E sua sensualidade de juventude, tão fascinante nos anos 1970, voltava em comentários de mulher madura e dona de seu corpo.
Uma das coisas que mais me comoviam era que isso estivesse se dando exatamente em São Paulo. Onde tudo começou a ser o que é para nós, os baianos do tropicalismo. “Baby” soou como um tratado histórico vivido na carne por ela e pelas pessoas que a estavam vendo atuar. Eu próprio entendi melhor o que buscava quando quis produzir repertório novo para Gal cantar. Nossa vida recuperou grande parte de seu sentido. Como “Recanto” voltará à cidade do “Vapor barato”?
Caetano Veloso.
© Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações.