Responsabilidades (07/10/2012)
Julio Vellame me relembrou que ouvi dele a frase “a missão do Brasil é salvar a África”. Ele conta a história da conversão de sua mãe à Igreja Messiânica. Um homem chamado Francisco, preto, ex-jogador de futebol e então ministro da referida igreja, encontrou a família Vellame na praia do Porto da Barra, e não apenas tocou a alma dessa mulher valente, atraindo-a para a organização religiosa de origem japonesa, como também ensinou a seus filhos que o Brasil tinha a missão de salvar a África. A narração me impressionou. A mãe de Julio, Lurdinha, participou do grupo de Marighella na luta contra a ditadura e, na prisão, revelou-se a mais resistente entre as pessoas torturadas por Fleury, segundo palavras do próprio Fleury em declaração pública. Que ela hoje pertença a essa organização religiosa sem que suas posições no que diz respeito à política tenham se abalado em nada diz muito sobre o ar dos tempos. As mudanças por que estamos passando são de imenso alcance. A crise financeira no Atlântico Norte, a angústia no Oriente Médio, a incerteza na América Latina, os prazos alarmantes das questões ecológicas e climáticas, tudo faz pensar em turbulências fortes e no longo tempo de reestruturação de todas as coisas. Faz, como sempre, também pensar no fim de tudo. Mas o Brasil está habituado a sonhar como quem não tem grandes responsabilidades.
Isso é ruim e é bom. Exemplo do autodesrespeito brasileiro: a ausência de material de arquivo audiovisual nativo sobre as apresentações tropicalistas: no aclamado filme “Tropicália” há tratamento criativo e rítmico de fotos estáticas feitas no Brasil (e já sobejamente conhecidas) e uma riqueza surpreendente de material gravado na Europa, seja na televisão portuguesa, na francesa ou no cinema britânico. Eles guardaram mais do que nós, que tínhamos toda a série do “Divino maravilhoso”; o show dos Mutantes dirigido por José Agrippino de Paula; o show de lançamento do LP “Tropicália” com Grande Otelo, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Linda e Dircinha Batista, além do defunto de Vicente Celestino sendo velado no hall do hotel em São Paulo; o show da boate Sucata; entrevistas com Hebe — enfim, uma cornucópia de eventos que ou não foram registrados ou tiveram seus registros apagados ou queimados. A maior parte foi apagada deliberadamente. Você vê o documentário que Scorsese fez sobre Dylan e fica pasmo ao ver como os americanos documentaram cada entrevista dada pelo então promissor cantor folk. Podemos parar aqui e dizer que Dylan e os Estados Unidos se merecem mutuamente. Nada na História do Brasil fez com que pudéssemos ter uma atitude de altas expectativas a nosso próprio respeito que nos levasse a registrar o que surge. Tampouco propiciou-se o aparecimento de figuras que merecessem tal atenção. É ruim.
Mas o que é bom? Estarmos ainda na indefinição de nossa mensagem sem que nos convençamos de que não teremos mensagem relevante. Estados-nação parecem estar sumindo. Será? As indefinições atuais mais perguntam isso do que fazem qualquer afirmação. Há algo que se chama Brasil, enorme, onde a população fala português, onde há um grau de mistura racial e cultural elevado (e um estilo de recepção de imigrantes diferente do que preveem as regras multiculturalistas), que não vai desfazer-se ao ritmo das querelas entre Espanha e Catalunha. Ou seja: nossos sonhos nacionais têm validade. Estarmos fora da roda dos que falam e significam nos deixa espaço para cultivar os sonhos como sonhos.
Luto pela responsabilidade crescente. E ela se dá. Mas simpatizo com a confusão que nos impede de ter lugar de liderança nítida: não daremos as cartas com as regras do jogo que ainda estão em vigor. É ambição grande demais. Mas é a que surge livremente em meu espírito.
Estou com o reverendo Francisco, como os seguidores da Messiânica o chamam: o Brasil tem a missão de salvar a África. Isso significa também salvar a raça negra na diáspora. A atuação do Brasil no Haiti tem sido notável. Do Viva Rio à “Economist”, não há quem não veja algo novo no modo como os soldados brasileiros se relacionam com o povo haitiano. Os Estados Unidos já fizeram muito. O Brasil deve fazer melhor. “Salvar” uma “raça” é ideia absurda. A não ser que, como sugere a existência do Brasil, seja, ao mesmo tempo, salvar a Humanidade da ideia de raça. No texto mais maluco que escrevi, propus um Brasil ateu. Mas antevi uma revolução religiosa. Por isso gosto dessa concepção de Mangabeira. Hobsbawm via o mundo dos Impérios e das revoluções contra eles. Não via o que nós aqui podemos ver.
Caetano Veloso.
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