Retroflexo (02/12/2012)
Quase todos os erres que ouvi dos jovens que formavam a plateia do “Altas horas” eram retroflexos. Não me lembro de onde eram todos os grupos de estudantes que estavam ali: quando Serginho Groissman os enumerou eu estava menos atento do que devia e terminei ouvindo os nomes das cidades sem registrá-los. Mas seguramente não eram todos do interior paulista. E pelo menos um era de Curitiba. Um garoto curitibano fez uma pergunta à sexóloga do programa e seus erres eram retroflexos, como se ele fosse de Piracicaba.
Observo que na capital paulistana ouve-se muito mais esse tipo de erre do que se ouvia quando conheci a cidade, em 1965. Me lembro também de ter ficado surpreso ao ouvir, no “cassino” do quartel dos paraquedistas, militares do interior gaúcho pronunciarem assim os erres. Juntando tudo isso com os retroflexos do sul de Minas (Milton Nascimento cresceu ouvindo-os e usando-os) — e com as póitas e póicas que ouvi de meu querido amigo Wladimir Carvalho quando, estudantes em Salvador, conversávamos no diretório acadêmico da Faculdade de Filosofia (isso, se ele queria imitar o linguajar rural de sua Paraíba natal) — eu releria as observações sobre essa pro-núncia que apresentei no livro “Verdade tropical” como assustadoramente desavisadas.
Eu me lembro de esse capítulo ter provocado a ira de uma amiga que fiz no Obra em Progresso, blog que acompanhou a preparação do disco “Zii e Zie”: ela, mineira, tinha uma perspectiva estatisticamente muito mais realista do que a minha. Vindo do Recôncavo Baiano, onde cresci ouvindo os erres locais e os cariocas — pouco depois, os paulistanos não retroflexos — eu vivia no erro ao crer que só se virava a ponta da língua para o alto do palato para produzir-se um erre numa pequena área que cobria parte de Minas e o interior de São Paulo. Eu não apenas chegava ao absurdo de julgar que tal pronúncia não era da natureza da língua portuguesa: eu a qualificava de “aleijão”. Escrito no tom e no ritmo em que isso vinha — e dada a expectativa fundada que o leitor teria de que eu apresentasse argumentos desqualificados sobre questões científicas —, a barbaridade passava. Sobretudo porque o tema central do trecho era a história da minha visão do inglês, com todas as ignorâncias e os preconceitos que nutri ao longo do meu crescimento, a referência à ocorrência brasileira do fenômeno sendo um pequeno apêndice que continha sua própria dose de humor e autocrítica.
Na verdade não reli esse texto para fazer os comentários que faço aqui. Apenas me lembrei dele, dada a impressão de onipresença que essa pro-núncia provocou hoje em mim. E, mesmo quando eu ainda supunha que ela só vigorava no interior paulista, compus e gravei uma canção cheia de amor em que todos os erres em situação de serem assim tratados o eram em toda a primeira estrofe da canção. Esse amor se dirigia ao erre caipira, que passara (nos anos 1970) a me parecer charmoso na boca de bonitas universitárias. A música se chamava “A Outra Banda da Terra”, e era sobretudo de amor à banda de que talvez já soubesse que ia me despedir.
Hoje, no estúdio-auditório de TV com a banda Cê — da qual talvez esteja me despedindo com um terceiro disco (e ouvindo tantos erres retroflexos) — pensei na Outra. Eu estava particularmente desconcentrado e, enquanto ouvia as perguntas e respostas (e as rápidas e agudas intervenções de Ivete Sangalo, que também tomava parte no programa), minha cabeça ia de “Verdade tropical” para Arnaldo Brandão, Vinicius Cantuária, Tomás Improta, Bolão (e logo Perinho Santana, Zé Luiz…). Recentemente dialoguei com Arnaldo sobre a gênese e o fim da Outra. Ele tinha trazido o slap para o baixo brasileiro ainda no disco “Bicho”, antes de A Outra se formar. E liderou essa formação. Pois bem, na música que fiz dando um abraçaço nela, considero parte da composição que os erres da estrofe inicial sejam retroflexos.
Agora vejo que se, por um lado, eu voltar a ler o trecho de VT que toca no assunto é capaz de achar motivos para ser mais benevolente comigo mesmo, por outro, se eu for estudar um pouco mais, meu estranhamento lusófono com os erres ingleses pode ficar ainda mais fora de proporção: uma olhada na Wikipedia em inglês e me deparo com “retroflex” encontradiço em vastas áreas do Brasil, em sueco e norueguês, em línguas da Índia, mas só uma vez referido como presente em “dialetos americanos do inglês”. A vastidão de minha ignorância é fascinante. A descrição do tal som que fonólogos apresentam é mais cheia de complexidades do que sonhava minha filosofia (que só é vã em português: a frase de Shakespeare em inglês não traz o nome qualificado por adjetivo nenhum).
Caetano Veloso.
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