'Roda viva' (12/08/2012)
Me (desculpe-me, Heloisa, mas eu gosto de começar frase com “me”) chamaram para participar da entrevista a Mangabeira no “Roda viva”. Era-me impossível sair do Rio e o programa é em São Paulo. Daí sugeriram que eu gravasse perguntas pelo Skype. Gravei duas.
A primeira era assim:
“Professor: num texto de que gosto muito, o senhor diz: ‘Uma doçura gratuita, calor misterioso, já une o Brasil. Será que nasce da sabedoria a respeito das coisas mais importantes?’ Minha pergunta é: que aspectos concretos da vida brasileira lhe parecem representar essa sabedoria a respeito das coisas mais importantes? O que, por exemplo, na sua atividade atual em Rondônia, o senhor encontra que sugira isso?”
Bem, estou reescrevendo o que anotei e perdi (e a gravação ficou com a produção do programa). Mas o sentido era esse. Gravei outra pergunta, a respeito de religião: foi a que foi ao ar. A primeira foi descartada. Tive pena. A pergunta sobre religião deu algum caldo, mas a primeira tinha o valor de repetir na TV um trecho de artigo muito forte publicado em jornal. Como sou paranoico (e o apresentador do programa é-me especialmente antipático), fiquei com a impressão de que a minha pergunta de escolha foi cortada porque era uma levantada de bola — e o “Roda viva” parecia não querer ir muito além do que já dizia no texto de abertura, em que Mangabeira era descrito como sendo uma figura política folclórica. Eu queria que o espectador ouvisse essa “doçura gratuita” e esse “calor misterioso”. E queria divulgar a atividade de Mangabeira em Rondônia. Pergunta sobre religião é sempre “casca de banana” (e o apresentador aproveitou para antepor à resposta do professor uma questão direta sobre sua religiosidade pessoal). Mas Mangabeira, depois de dizer que à pergunta sobre sua religiosidade não podia dar uma resposta simples (embora tenha dito que teve formação católica — e que seu pensamento é muito influenciado pelo cristianismo — mas que não tem vínculo com nenhuma das religiões instituídas), brilhou ao declarar que “a vida religiosa do povo brasileiro é quente, mas a vida política do povo brasileiro é fria”.
De todo modo, ele disse muitas das coisas que queria dizer e deu como exemplo da vitalidade brasileira os empreendimentos de homens do Sul que foram para Rondônia, onde a criação de empresas rurais de porte médio periga ser esmagada por políticas de apoio aos chamados “grandes campeões mundiais” de produtividade econômica. O programa pode ser visto no YouTube, e nele há muito sobre o que refletir. Quero destacar a última pergunta e a última resposta. O professor Vladimir Safatle voltou a uma questão já abordada antes por outro entrevistador, a respeito de suposta desatenção a pensadores brasileiros nos escritos de Mangabeira. Safatle: “Na sua fala, dá a impressão de que o senhor faz terra arrasada da intelectualidade nacional. Porque o senhor coloca duas possibilidades: ou um aventureirismo espontaneísta, como o senhor falou, ou uma cópia de modelos internacionais. Eu gostaria de perguntar, mais uma vez: dentro do pensamento nacional, o senhor não enxerga alguma espécie de via que também tentou fazer o tipo de projeto que…”
Mangabeira: “Muitas, muitas! Quando eu descrevi aquelas tendências (racionalizadoras, humanizadoras e escapistas), eu não estava me referindo ao pensamento brasileiro, eu me estava referindo ao pensamento mundial. Sobretudo como existe no Atlântico Norte. Mas nós temos um problema que se pode descrever da seguinte forma: o pensamento brasileiro sempre foi mais interessante, mais fértil, quando ele se debruçou sobre o próprio Brasil. E, ao se debruçar sobre o Brasil, ensaiou heresias metodológicas.”
Safatle: “Como, por exemplo?…”
Mangabeira: “Ocorreu em muitos dos nossos pensadores, nesses que foram citados e em muitos que não foram citados. Eu gostaria de ver aprofundada esta tradição ou esta antitradição brasileira, em que nós usaríamos a tentativa de compreender o Brasil como inspiração para a rebeldia contra as tendências dominantes do pensamento mundial. Não nos apresentaríamos como defensores de meras idiossincrasias, inventadas para tratar de uma realidade local. Ao contrário, utilizaríamos o entendimento da realidade nacional como uma inspiração para pensar o mundo de uma forma diferente. Eu sinto no Brasil uma energia, um afã, um impulso capaz disso. E sinto muito mais agora no povo brasileiro do que nas elites governantes e pensantes do país. Tratemos de traduzir essa rebeldia lá em cima.”
Dificilmente eu me identificaria mais com uma observação sobre o assunto.
E aí veio o tema de Chico com tratamento prog, como é comum em música de telejornal.
Caetano Veloso.
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