Sonhos (06/05/2012)

Não me senti bem ao ver a foto de um policial armado no corredor de uma escola do Rio, na frente de um grupo de adolescentes. Parece-me que trazer o conflito entre a violência (legítima) do Estado e a violência marginal para dentro do ambiente da educação não pode prometer boa coisa. É um evidente exemplo de falta de sensibilidade para o sentido da educação. Os policiais vão proteger quem exatamente, aliás? E como se indicarão os suspeitos? Os esboços de respostas a perguntas como essas que li no jornal me pareceram desalentadores. Pesadelo. A impressão mais forte que fica, no entanto, é a de descuido com as imagens sociais a que crianças devem ficar expostas dentro dos edifícios aonde são levadas para aprender a ler, escrever, calcular, tomar consciência da formação da sociedade em que vivem, do mundo em que nasceram, das leis que regem a matéria, e, sobretudo, a conviver.

Li os artigos de Zé Miguel Wisnik e Francisco Bosco sobre o ensaio de Roberto Schwarz a respeito de “Verdade tropical”. Li também o de Nelson Ascher na “Veja”. Naturalmente tenho interesse na discussão. E, também naturalmente, me sinto mais próximo de Wisnik e Bosco do que de Ascher, embora tenha grande respeito pela produção poética e crítica deste último. É que sou mesmo mais chegado aos meus dois colegas de espaço aqui no GLOBO do que ao bissexto articulista da revista da Abril. Contrariando o que Schwarz levou um jovem esquerdista a dizer de mim (que eu me situo, no espectro político, na centro-direita), a primeira reação que tive ao ler o texto de Ascher foi – confirmando o que Schwarz sugere sobre minha personalidade, isto é, que sou afeito a suspeitos arranjos harmonizadores entre forças antagônicas – pensar: se eu fosse escrever um artigo para a “Veja”, procuraria me colocar um pouco mais à esquerda. Mas o fato é que a conclusão final do poeta – de que o ensaio de Schwarz, apesar dos elogios (que eu, de minha parte, e em discordância do que ele diz, não considero superficiais), resulta numa reprovação política que se transformaria em condenação policial caso não vivêssemos numa democracia liberal e sim num país comunista de partido único. Me reconheço nos textos de Bosco e Wisnik. E na foto escolhida pela “Veja” (nunca apareço tão bonito naquela publicação).

Insistindo em Martinha, Lucrécia e “Verdade tropical”, acho que eu deveria parar para escrever algo meditado sobre o caso. No momento estou escrevendo apenas canções (é como se isto aqui não fosse escrever). Mas se eu achar o tempo e conseguir reter na mente o que me parece que poderia ser útil e relevante para a discussão, farei. Não sei se neste espaço, que é grande demais para o que em geral tenho para dizer, mas demasiado pequeno para o que passa pela minha cabeça quando penso nas questões levantadas por Schwarz.

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Revi “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” em Salvador – e gostei ainda mais. Parte do entusiasmo pode se dever a eu ter ido assistir ao filme no Cine Glauber Rocha, uma das coisas que mais amo nesse Brasil. A entrada, que já era assim – com os elegantes índios de Caribé nas paredes – quando eu me mudei para Salvador, em 1960, a praça Castro Alves na frente, a baía atrás da estátua do poeta. Mas acredito que a maior parte da responsabilidade pelo meu entusiasmo é do próprio filme, digam o que disserem. José Eduardo Agualusa, o escritor angolano que tanto admiro (e cujos romances “Nação crioula”, “O ano em que Zumbi tomou o Rio” e “O vendedor de passados” – pelo menos esses – deveriam ser lidos por todos os brasileiros alfabetizados), me disse, na noite da pré-estreia do filme no Rio, que o romance de Marçal Aquino em que ele se baseia (tendo o próprio Aquino participado da adaptação do livro para o cinema) é muito bom. Fui à Livraria da Travessa e comprei um exemplar para levar para a Bahia. Claro que Agualusa não poderia estar errado. O livro é mesmo bom (a moça da livraria me disse que uma pá de gente sabe muito bem disso, já que o romance vende muito e os vendedores ouvem elogios de seus fregueses). E tem todas as vantagens que a literatura pode ter sobre o cinema. Mesmo assim, vejo algo nesse filme (e não é só a Camila Pitanga) que vai além das qualidades do livro, que o filme apenas em parte reafirma. Suponho que ter de viajar ao Pará para realizá-lo, e lá encontrar aquela gente (mulheres, homens adultos, crianças de 8 anos, velhinhos de ambos os sexos) que canta tão divinamente bem os refrãos religiosos que o pastor (no filme tão poeticamente sincrético, com estrutura básica de pastor evangélico mas com elementos de padres católicos da teologia da libertação e gurus do Santo Daime) puxa a palo seco. E – talvez mais intensamente ainda – o grupo de cantora, músicos e plateia de um show de carimbó ao ar livre (como parte de uma manifestação política): é o Brasil dos sonhos explodindo (bastam alguns segundos) em generosidade inédita no concerto das nações. Kitsch? Who cares

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Não sei como a Bahia consegue ainda parecer bonita. Mas acontece. Apesar dos prédios que parecem feitos de plástico – e que têm triângulos vasados sobre os pórticos -, o mar encontra espaços elegantes para insinuar seus azuis e verdes, num final de abril que desmente o ditado (“abril, chuvas mil”) mas se torna começo de maio com direito ao tradicional “veranico”, expressão que menciono com um aceno a Fernando Barros, que, entre alguns outros, me compreenderá.

Caetano Veloso.

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