Stevie e Zé (02/10/2011)
Eu não sei. As notas que parecem derreter-se no ar da minha memória estão relacionadas a outras que surgem ao mesmo tempo que elas, ou tinham aparecido antes, ou despontam depois, todas se dissolvendo nas brisas da lembrança, sempre criando o esboço de um todo sugestivo que percebo bastante bem o que diz: equilíbrio entre sons sutilmente discrepantes, como na música dita impressionista do final do século XIX. Não obstante, me é impossível capturar quaisquer dessas notas em seu sentido musical, guardar-lhes o entendimento. Se pego o violão e executo uma sequência de tônicas, dominantes, subdominantes e tons relativos - por mais que insira alterações como sétimas maiores, nonas ou quintas aumentadas nos acordes que representam tal sequência - tenho consciência do que estou fazendo. Se ouço algo em que reconheço relações harmônicas do mesmo tipo, igualmente me encontro consciente do que se passa.
Mas isso é muito limitado. Os baixos indicativos das tonalidades me servem de guia. E mesmo se as alterações implicam inversões, posso às vezes entender que a terça - ou a quinta - na região grave indica um caminho (em geral descendente) que sei seguir, mesmo sem que me seja dada a pista através da nota fundamental de cada acorde. A composição que meu amigo me mostra agora não traz indicações que cheguem perto desse grau de definição. O número de alterações, as escolhas de dissonâncias que se sucedem sem deixar pistas - apenas a certeza de que há harmonia e possivelmente alguma beleza - tudo isso passa por minha percepção sem que eu possa reter o significado de cada passo técnico. Não nasci com essa inclinação irresistível para as relações tonais - e não me adestrei para superar essa relativa indiferença. Só suponho que deveria porque vivo de música.
Meu amigo expõe a peça no piano. Ele, que é, de todas as pessoas, a que melhor entende o que quero dizer quando digo algo, sabe música e parece supor que eu ouço as harmonias com um juízo musical autêntico. Como admira muitas das canções irregulares que venho fazendo há muitos anos, acho que acredita que eu seja possuidor de algo como uma musicalidade. Musicalidade: essa palavra, essa tão bonita palavra, me maravilhava e me oprimia quando eu tinha 18 anos. Continua a fazê-lo, agora que sou quase um velho. Meu amigo é mais moço que eu, mas já está bastante maduro para ter alguns cabelos brancos e saber que sou um excluído de tal bênção. O piano permite que toquemos mais notas simultâneas do que podemos no violão. Meu amigo deixa seus dez dedos deslizarem sobre as teclas brancas e pretas e me olha parecendo certo de que reproduzirei no violão que dorme em meu braço o essencial da música que executa. Eu sorrio amarelo porque sei que não teria tempo de pegar uma nota sequer daquela enxurrada brilhante e levar meu violão a ecoá-la dando-lhe sentido estrutural. Bem, uma ou outra nota na ponta aguda do acorde eu poderia repetir numa corda do meu instrumento, mas sem fazê-la consistir em nenhuma lógica sonora - nada além do que uma criança pouco dotada faria. Essa minha considerável indisposição para a música aparece aqui nesta sala como um ruído incômodo. Meu sorriso é doce porque eu gosto muito do meu amigo. Mas é amarelo porque estou dizendo a ele, sem saber como dizer, que não tenho o direito de viver de música.
E, no entanto, vivo. Aceito, para não ser demasiado teimoso, as alegrias que minha condição fundada em pretensões falsas me regala. Aceito também a vergonha, a insegurança, a angústia de abismo que essa falsidade acarreta. Têm sido muitos os momentos de embaraço quase insuportável: em encontros com outros músicos mundo afora; em ensaios; quando começo a cantar num tom que não é o que os instrumentos expõem; quando perco a conta do número de compassos de uma frase; quando, cantando numa gravação de música dos outros, demoro demais para definir uma nota invulgar da melodia. Acredito que, para fazer música, o cara tem que poder fazer algo muito bonito demais ou - o que não é assim tão outra coisa - mexer com o que a Humanidade entende por música. Sabendo disso, olho com desprezo para tudo o que produzi. Não vejo nada essencial, necessário. Tampouco vejo algo sublime ou arrebatador. Não para quem tem exigências estéticas consideravelmente altas. Por que não me desespero? Por que o sorriso amarelo que ofereço a meu amigo agora é, ainda assim, genuinamente doce? Acho que é porque eu gosto de viver e não poria demandas elevadas ou radicais acima desse gosto.
De que vale a vida se não respondemos ao escândalo que é existirmos com gestos igualmente extremos como a fé inabalável em Deus, a dedicação obsessiva a uma pessoa, uma arte, uma causa? Se é só para aumentar a altura do monte de lixo que se produz em arte, música, poesia - sem falar em organizações políticas, hábitos de vida, regras morais - melhor seria o retiro do asceta, o suicídio dos que se sentem desgraçados, a loucura do que abandona o comércio com seus semelhantes, o niilismo do Homem do Subterrâneo, a alegria terrível do homem-bomba. No entanto, a resposta às perguntas que encabeçam este parágrafo é consistente: a vida vale sua evidência animal - e eu não me sinto no direito de decidir se o que me parece mera contribuição para o aumento do monturo de detritos não pode ser visto como um destino se desenhando segundo volteios da dança do Espírito. E chorei ouvindo Stevie Wonder.
Caetano Veloso.
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