Tigre (13/11/2011)
Acho que não conheço Flora Thompson DeVeaux pessoalmente. Digo “acho” porque estava certo de nunca ter encontrado Benjamin Moser (embora o achasse familiar nas fotografias), mas afinal ele me disse que nos conhecemos em Nova York (já aderi ao Y e ao K na grafia do nome dessa cidade tão amada e aonde vou tão pouco: as letras voltaram oficialmente para o português, no amalucado acordo, e toda a razão do argumento que me foi apresentado por Sergio Flaksman ganhou do meus caprichos): Benjamin trabalhava na Knopf, era assistente de George Andreou quando este me convenceu a escrever e publicar “Verdade tropical”. Admito que ele mudou bastante (não sei se emagreceu ou se simplesmente ficou mais bonito), mas o fato é que eu o vi e falei com ele muitas vezes naquele tempo, e me surpreendeu que eu não me lembrasse dele agora. Assim, pode ser que eu já tenha visto Flora em algum lugar. Mas o querer dizer isso? Que não gravo as feições de americanos que gostam de Clarice Lispector?
Bem, estou no Recife, me preparando para ir para o Chevrolet Hall (que nomes têm os locais de show hoje em dia!) cantar com Maria Gadú, sendo que saio do palco para um jatinho que me leva a Maceió, onde faço show amanhã (coisa rara em minha vida fazer shows em dias seguidos em cidades diferentes, mas o voo daqui até a capital das Alagoas dura menos de meia hora). De modo que não tenho tempo para tentar escrever objetiva e concisamente, o que deveria ser meu fito, uma vez que escrevo para comentar algo escrito por uma americana. Já ralham comigo amigos e desconhecidos pela falta de clareza e coesão dos meus textos — os menos chegados sempre exemplificando com a capacidade anglo-saxônica de escrever de maneira breve e expressiva. Imagina se me ponho a dialogar com uma jovem ianque que estuda em Princeton, encafifou-se com o jeito high school dos alunos da PUC e, sem embargo, apaixonou-se pelo Rio de Janeiro! Logo eu, que estudei na Universidade da Bahia, tendo ido às aulas no primeiro ano e abandonado a escola no segundo, o ano do golpe militar (que Mauro Lima retrata em “Reis e ratos”, com ênfase na participação da CIA no episódio). Não. Nem dá.
Li alguns textos de Flora no blog da “Piauí” porque me mandaram aquele em que ela comenta “La piel que habito”, referindo-se en passant ao artigo que publiquei aqui sobre o filme. São textos bacanérrimos. Têm as virtudes louvadas na boa prosa americana em geral, mas com uma marca pessoal irresistivelmente vívida. Há uma apresentação em (ótimo) português, mas os posts mesmo são em inglês, porque ela acha que seu humor é “um pouco intraduzível”. São textos engraçados, elegantes e que esboçam um olhar antropológico sobre a vida brasileira. Ex-aluno de Padre Pinheiro, não me atrevo a querer enfrentar a ironia veloz de uma mente juveníssima e metropolitana. Mas, como já escrevi em algum lugar, o tema do Brasil visto por estrangeiros foi parte do núcleo do Tropicalismo e nunca me abandonou. Flora chia contra o que lhe pareceu clichê na imagem caricata de um carioca fantasiado de tigre, cuja biografia é dada em segundos nos termos de “cresceu numa favela” etc. Que ela tenha quase exortado os brasileiros a reagirem contra isso é intrigante. No post, ela faz um paralelo, que seria forçado se não fosse uma piada explícita, entre a ideia convencional que forasteiros fazem do Brasil habitado por bandidos de favela que se fantasiam no carnaval e a que nós fazemos das relações dos americanos com a ceia do Dia de Ação de Graças. Em suma, ela diz que aqui perguntam a ela se vai perder o tal peru do jantar, obrigatório nas sitcoms da TV, e parece que a favela do filme de Pedro é algo que quem não conhece o Brasil pergunta a quem, como ela, conhece bem mas não é daqui, se não teme. E conclui que os americanos ao menos são responsáveis pelas sitcoms, enquanto os brasileiros deixam a última palavra a Almodóvar e aos Simpsons (em referência a um notório episódio do desenho em que o Rio aparece mal).
Sou do tempo em que a plateia brasileira desprezava “Orfeu negro” (que é adorado por estrangeiros e até inspirou o romance de que nasceu Obama) como os austríacos rejeitam “A noviça rebelde”. Contei a Pedro sobre o texto de Flora, e ele logo se lembrou de “A condessa descalça” e “Vicky Cristina Barcelona”, para só falar de dois filmes americanos de grandes diretores em que a Espanha aparece em clichês inverossímeis. Creio que Flora não acharia as Espanhas de Mankiewicz e de Woody Allen mais aceitáveis do que o Rio de Pedro. Mas o que mais me interessa dizer a ela não é que Pedro se tenha posto acima desses exemplos (pois apesar de parecer preso a contradições relativas a seu tom paródico e autoparódico, Pedro não nos deixa brecha para pensar que ele se rendeu a um clichê). O que me interessa é frisar que os brasileiros não se grilarem com isso pode ser um bom sinal. Para um velho tropicalista, sim. Faz pouco tempo, os atores de “Velozes e furiosos” vieram ao Rio lançar o número X da série. Dizem que o Rio é tratado como lixo sociológico numa obra que é lixo artístico. Meu filho de 19 anos foi ver e achou o filme mau, mas apenas riu dos erros e dos desrespeitos à vida carioca. Houve tempo em que a tensão relativa à improvável respeitabilidade do Brasil aos olhos dos outros era opressiva. Hoje, sentimos que filmes como “Cidade de Deus” é que dão a última palavra. Internamente, são os filmes de Coutinho.
Caetano Veloso.
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